16 de junho de 2011

As Estrelas de Branca


Todas as noites, antes de deitar-se para dormir, a pequena Branca admirava as estrelas através da janela de seu quarto e perguntava-se o que na verdade elas eram. Ficava na janela horas e horas até que o sono a vencia e por ali mesmo adormecia.

Com o raiar de mais um dia, a menina ficou aborrecida por ter pegado no sono e prometeu para si mesma que na noite seguinte, não dormiria. Ela tinha um plano. Logo que as primeiras estrelas apareceram, Branca pegou uma manta velha, alguns travesseiros, uma lanterna, uma coberta e foi para o jardim. Dali, teria uma visão melhor e com certeza não adormeceria.

As horas passaram e a menina continuava no jardim, fitando o céu com expectativa, mas alguma coisa estava errada naquela noite. ‘Onde estão as minhas estrelas?’, perguntou-se. ‘Por que elas não estão brilhando?’. Decepcionada, Branca voltou para casa e subiu para o seu quarto com lágrimas nos olhos. Vendo a tristeza no rosto da menina, seu pai a seguiu e a encontrou acuada num canto do quarto.

“O que houve, querida?” — perguntou o homem enxugando suas lágrimas com um lenço.

Ela fungou.

“Minhas estrelas. Alguém apagou as minhas estrelas!”

O homem a pegou no colo e a levou até a janela.

“Branca, querida, ninguém ‘apagou’ suas estrelas, elas apenas estão escondidas atrás daquelas nuvens.” — e beijou sua bochecha. — “Às vezes, as estrelas precisam se esconder para que a chuva caia.”

Ela o encarou, aborrecida.

“Mas eu não gosto da chuva! Prefiro as minhas estrelas.”

Achando graça da inocência da menina, o homem riu.

“Eu sei, mas pense bem. Se a chuva não cair, quem vai regar todas as flores e árvores do nosso jardim e de todo o mundo? Sem a chuva as plantas não crescem, querida.”

Branca franziu o cenho, pensando.

“E se eu regasse as plantas com o meu regador? Assim as estrelas não precisariam mais ter que se esconder.”

“Mas é assim que funciona a natureza, Branca. As plantas, os animais, todos nós precisamos da chuva, assim como precisamos do sol que nos aquece pela manhã. Não se preocupe, suas estrelas vão aparecer.” — e a levou para a sua cama, cobrindo-a cuidadosamente. — “Agora está na hora de dormir. Boa noite.” — com um beijo de despedida o homem acendeu o abajur e foi para a porta.

“Papai?”

“Sim, querida?”

“O que são estrelas?” — perguntou a menina, a curiosidade lhe saltando os olhos.

O homem pensou bastante antes de responder. Não queria desapontá-la, mas uma conversa como aquela levaria a noite toda. Decidiu então deixar por conta da imaginação da menina.

“As estrelas são anjinhos brilhantes que todas as noites enfeitam o nosso céu.”

“Anjos?” — perguntou confusa. — “Mas eu pensei que os anjos tivessem asas?”

Pelo visto aquela conversa ainda renderia bastante.

“Há vários tipos de anjos.” — começou ele. — “Anjos com asas, espadas, arcos e flechas e... tem os anjos que são estrelas.”

“Hmm” — disse pensativa. — “Então aquela história de Astros Luminosos é mentira, papai?”

Surpreso o homem gargalhou.

“Não exatamente. Isso foi só uma coisa que os adultos inventaram.”

“Por que os adultos gostam tanto de complicar as coisas?” — murmurou, dando um longo bocejo.

“Essa resposta, eu não sei.” — disse ele ajeitando seu travesseiro e a beijando novamente. — “Boa noite.”

“Papai?”

“Sim, querida?”

“Pode ficar comigo esta noite? Tenho medo de dormir sozinha.”

“Mas você faz isso todas as noites, querida.” — disse ele acomodando-se no pequeno espaço que restara na cama.

“Eu nunca durmo sozinha, papai.” — e bocejou novamente. — “Meus anjos-estrela estão sempre comigo. Mas é que esta noite eles não virão. Eu sei que não.” — disse ela com os olhos cheios d'água, aconchegando-se em seus braços. — “Boa noite, papai.”

Sem argumentos, o homem apenas a abraçou. O que ele não daria para que uma única estrela brilhasse no céu naquele momento.





1 de junho de 2011

Intermitências


Um gotejar contínuo caia sobre seu rosto fazendo-a despertar para uma realidade que desejava jamais voltar. As roupas destruídas e o corpo violentado não eram nada comparados a dor que sentia em seu íntimo. Esperava pela morte que já estava em seus calcanhares e a receberia de braços abertos. Na verdade, isto seria a única coisa que se permitiria aceitar naquele momento. 

O fim.

Seria o fim de uma vida marcada por leviandade e libertinagem. O que mais poderia se esperar de alguém com uma vida como aquela? Ter o corpo possuído por diversos homens, simplesmente pelo prazer de dar prazer, até que não era tão ruim (dependendo de quando e onde). O dinheiro fácil a proporcionava uma vida de glamour e luxo. Padrão este que jamais conseguiria se continuasse atrás do balcão daquela butique chinfrim. 

Enquanto a água da chuva caia, lavando o sangue que agora escorria por seu decote, percebera que o preço que estava prestes a pagar por uma vida sem regras, sem pudor, era alto demais. 

Ainda podia sentir, impregnado em seus braços, mãos, pescoço, seios... cada parte do seu corpo em que ele a tocou, o seu cheiro. A dor aumentava na medida em que a cena voltava as suas lembranças.

Arrumou-se mais demoradamente que o de costume para o encontro. Afinal, não seria um programa como qualquer outro. Até mesmo porque ele não era um cliente como qualquer outro. Aquele sim era o tipo de homem que estava disposto a pagar o “seu preço” — afinal, custava caro manter-se sempre linda e “gostosa”. Ele, por outro lado, fazia todas as suas vontades, realizava todos os seus desejos e caprichos. Comprava-lhe as joias mais caras e as roupas das melhores marcas e grifes. Mandava-lhe flores todas as manhãs e à noite cestas de bombons que encobriam o que de fato era a surpresa: langeries de renda, de todas as cores e modelos.

Mas aquilo precisava terminar.

Simon. Assim ele se chamava. Um homem envolvente e misterioso. Seus olhos negros eram intimidadores e, ao contrário do medo, sentia-se cada vez mais atraída e envolvida por aquele homem, de fala mansa e ponderada. Porém, após um tempo encontrando-se com frequência, percebera mudanças drásticas em suas atitudes e gestos. 

Simon tornara-se possessivo e extremamente ciumento. Não era para ser assim. Sua vida não lhe permitia ter um relacionamento sério com nenhum homem e último que tentou, não durou duas semanas. Tempo necessário para que o sujeito percebesse a boa bisca que apresentava aos seus como sua namorada.

Sentia-se livre e queria continuar assim. Não queria estar presa ou manter qualquer tipo de vínculo com quem quer que fosse. Foi desse tipo de relação que fugira anos atrás. Um casamento mal sucedido, marcado por desconfianças e traições. 

Um vento frio percorreu seu corpo machucado e molhado, intensificando as dores em seus membros. Sem forças para sair de onde estava, fechou os olhos. Ele voltaria, sabia disso em seu inconsciente. E ela esperaria. Esperaria pelo “golpe” de misericórdia que a levaria direto para o fim. Fim este que aguardava com expectativa. 

Lutava com suas memórias, incapaz de acreditar que aquele homem, o homem que a fazia se sentir a mulher mais perfeita de todas. Aquele homem que sabia tocar seu corpo de forma cadenciada como nenhum outro o fizera, fora capaz de roubar não somente seus sonhos, mas também toda a sua vontade de viver. Desejava jamais tê-lo conhecido se previsse um fim assim, doloroso e tortuoso.

E ele voltou.

Com passos suaves e precisos, tocou a grama ao seu lado, aproximando-se lentamente, tornando aquele momento ainda mais desesperador. Porém, seu corpo fraco e moribundo recusava-se a se mexer. Não queria ver o que seu algoz lhe preparava. E então sentiu a violência de seu toque ao virar seu rosto para ele, forçando-a a abrir os olhos. 

O grito de dor preso em sua garganta soou fraco. Uma nota baixa e agourenta ao sentir a ponta da faca que cortava seu rosto. Um movimento lento e angustiante. A dor era dilacerante. O sangue quente e pegajoso escorreu por seu pescoço e ombros, empapando seus cabelos. Desorientada pela dor forçou seus olhos a se abrirem ainda mais, pouco se importando com as gotas que vinham do alto e insistiam em cair sobre eles, cegando-a momentaneamente. 

Um som metálico cortou o ar e o chão ao seu lado tremeu. Uma, duas, três... sete vezes, até que finalmente cessou, quando um objeto pesado caiu a poucos centímetros de seu quadril. Mais uma vez, Simon saiu e a deixou sozinha em meio às árvores e seu pavor crescente. Não havia mais sentido em lutar por sua vida, só queria que tudo aquilo acabasse o quanto antes. Não sabia por quanto tempo mais suportaria aquela tortura.

A chuva intensificou — assim ela pensou — até sentir o cheiro forte de gasolina que invadia suas narinas fazendo sua cabeça girar. Simon apenas a fitava com seus olhos negros, insondáveis. Ele aguardava por alguma coisa e sorriu ao vê-la piscar.

“O que você quer de mim?” — exigiu saber, desesperada.

Alisando seu corpo pela última vez, Simon a empurrou para dentro de um buraco, o que logo a fez concluir o que era o tal objeto pesado. Era uma pá e o que ele cavava naquele momento, nada mais era que a sua cova. 

E a chuva de gasolina continuou.

“Eu lhe avisei. Se não fosse minha, não seria de mais ninguém!”

Uma chama propagou em meio à escuridão úmida e medonha.