23 de novembro de 2012

A Casa do Lago




 Ao longe, o piar da coruja era acompanhado pelo vento que fazia as árvores chacoalhar e seus galhos arranharem os vidros da janela. Sophia levantou da cama e fechou as cortinas, mas nem assim foi capaz de abafar o assovio do vento que atravessava as frestas da janela. Não se arrependia de ter feito o que fez, tinha pena somente de Júlio. Júlio era um bom rapaz. O primogênito da família Buarque voltara recentemente à capital, depois de anos estudando Direito na Europa, e não tinha culpa do tal casamento arranjado que seus pais arquitetaram. Ele estava tão constrangido com a situação quanto Sophia. Viram-se muito pouco durante a infância e mal sabiam um sobre o outro. Eram completos estranhos que estavam prestes a viver uma vida matrimonial, mas sem afeto. Ele merecia alguém que gostasse dele de verdade. Mas infelizmente aquela pessoa não poderia ser ela, pois seu coração já era de outro. Outro que o arrebatou desde o primeiro momento em que se olharam. Olhou pela janela e não pode conter o sorriso ao lembrar-se do dia em que conheceu Marcelo.

Era domingo e estava quente como nunca naquela tarde. O suor descia-lhe pelas costas enquanto caminhava pelo rancho recém-adquirido por seu pai, arrebatado em um leilão hipotecário. O Barão dos Hectares, como era chamado pelo povo daquela cidade do interior de Minas Gerais, era temido pela maioria deles. Visto como um homem cruel e vil, Cristóvão não media esforços quando o assunto era dinheiro. Não tinha pena das famílias que despejou de suas casas, jogando-as na sarjeta, somente para apossar-se de suas terras e seu gado. Para ele, tudo era negócio. Sentia-se envergonhada ao sair nas ruas e ouvir os comentários dos populares a respeito de seu pai, que levado por sua ganância desenfreada, semeou o ódio no coração daquelas pessoas. Poder, dinheiro, posses; era somente nisso que o Barão dos Hectares pensava.

Preferia andar debaixo do sol daquela infernal tarde de verão a ter que ouvir seu pai e a família Buarque — dona de uma das maiores refinarias de açúcar da cidade — tramarem sobre seu futuro. Não gostava nem desgostava daquela gente, mas não lhe agradava nenhum pouco saber que sua vida estava sendo decidida entre um copo de licor e outro. No entanto, sabia o que estava por trás de tudo aquilo. E era isso que a deixava ainda mais desgostosa. Ganancioso como era, Cristóvão via naquela união a oportunidade de expandir ainda mais seus negócios e assim avolumar consideravelmente suas cifras. Mesmo que para isso, tenha que passar por cima de tudo e todos mais uma vez. Inclusive da felicidade de sua única filha.

 Descalçou os sapatos e colocou os pés na água fria e escura, refrescando-se. Com a ponta dos dedos, acariciou a terra úmida na margem do rio, perguntando-se se seu destino seria acabar como sua mãe, uma mulher cheia de ideais que sonhava um dia se tornar professora, mas que por causa das dificuldades de sua família foi forçada a casar-se com um homem que jamais amou e que morrera de desgosto, cansada das atitudes machistas do marido que nem mesmo a permitia olhar pela janela. Sentiu as lágrimas correrem pelo rosto rubro e febril pelo calor da tarde, preferindo encarar a forca a aquilo. Então uma ideia louca e tentadora lhe passou pela cabeça. Não tinha nada a perder, já que sua vida pouco importava para o Barão. Ela nada mais era que uma moeda de troca para o homem que jamais lhe demonstrou afeto. Talvez, se não tivesse nascido mulher, teria muito mais valor.

Despindo-se rapidamente, entrou no rio. Só não contava que sua profundidade fosse tamanha e seus pés mal tocavam o fundo. Debatendo-se como um animal no abatedouro, sentiu suas forças esvaírem e seu corpo afundou lentamente para a escuridão. Seus olhos ficaram abertos, tempo suficiente, para ver as últimas bolhas de ar, escaparem de sua boca entregando-se ao fim.

Morrer não era tão ruim assim como diziam. Foi rápido e não lhe causara dor alguma. Ainda podia sentir o calor do sol, ouvir o canto dos pássaros e até mesmo o relinchar dos cavalos. Era o paraíso! Seus pés tocavam a grama verde e sedosa enquanto seus cabelos esvoaçavam ao vento, como se cada parte do seu corpo ansiasse por aquele momento de alforria. Sentia-se leve, feliz. Finalmente estava livre da tirania de seu pai e sua ganância. Mas logo tudo ficou escuro novamente. Sentiu uma dor lhe queimar o peito e tudo ficou mais intenso. Agora, até o perfume das flores trazido pela brisa lhe penetravam as narinas como ácido.

“Moça? Moça? Você está bem?”

Abriu os olhos e então o viu. Não sabia ao certo o que sentiu naquele momento. Um calor subia-lhe pelas pernas alojando-se no peito, fazendo o coração bater tão rápido quanto as asas de um colibri. Seus olhos castanhos a fitavam com uma preocupação patente, enquanto suas mãos a seguravam impedindo-a de se mexer. Ele cheirava a terra e esterco. E estranhamente percebeu que aquele era o melhor perfume que já sentira em toda a sua vida. Quem sabe talvez estivesse mesmo morta e ele fosse um anjo? Um anjo de pele bronzeada e lábios rosados com a mais bela voz que já ouvira.

Perdera-se naquele olhar por um período incalculável. Era como se tudo a sua volta não tivesse mais a mínima importância. O canto dos pássaros, o relinchar dos cavalos, nem mesmo o cheiro das flores era tão magnífico e atraente como a presença daquele desconhecido. Ele então tocou seu rosto, alisando suas bochechas coradas. Seu toque era suave, apesar de a mão ser um tanto quanto avantajada e calejada, e de uma cadência acolhedora. Jamais havia sido tocada daquela maneira, exceto por sua mãe. A única pessoa que a amou de verdade.

Um vento frio varreu os campos e seu corpo estremeceu. Lembrou-se então do que tinha feito — ou do que tentara fazer — e sentiu mais uma vez as lágrimas lhe escorrerem pela face. Dentro em breve, o Barão sairia a sua procura e selaria de vez seu destino, amarrando-a a um homem que jamais amaria. Levantou-se rapidamente, vestindo suas roupas e saiu em disparada pelas margens do rio, deixando os sapatos e o belo rapaz para trás. Tudo o que mais queria era ir para longe, para onde seu pai jamais pudesse encontra-la. Definitivamente, não queria ter o mesmo fim que sua mãe.

“Espere!”, ouviu o rapaz gritar enquanto os cascos do cavalo batiam no chão, se aproximando rapidamente. “Aonde você vai?”

“Não tenho tempo para explicar nada agora. Eu preciso ir.”

“Mas para onde você vai?”

“Para qualquer lugar longe daqui.”

Ele a ultrapassou e parou, atravessando o cavalo em seu caminho, estendendo-lhe a mão.

“Suba, eu te levo.”

Juntos seguiram a cavalo, atravessando as pastagens até chegar ao outro lado do rio, onde uma cabana caindo aos pedaços lhes serviria de abrigo durante aquela noite fria. O lugar não chegava nem perto das acomodações com a qual estava acostumada, mas sentia-se estranhamente segura ali, ao lado daquele completo desconhecido.

“Como você se chama?”, perguntou Sophia, encolhida sob os cobertores enquanto o via atiçar o fogo na lareira com o fole.

“Marcelo.”, disse ele colocando mais lenha no fogo. “E você deve ser a senhorita Sophia, acertei?”

“Sim.”, respondeu ela já habituada aquele tipo de situação. Não havia uma única pessoa naquela cidade que não soubesse o seu nome.

“Do que está fugindo, senhorita?”

“Sophia. Por favor, me chame de Sophia.”

“Então, do que estava fugindo, Sophia?”, perguntou ele sorrindo enquanto a entregava uma caneca com um caldo verde e ralo.

“Da vida. Da vida que não quero para mim.”

Ele tocou seu queixo, levantando seu rosto e olhando no fundo dos seus olhos. Sentiu mais uma vez o calor lhe subir pelas pernas, causando-lhe palpitações. Que sensação mais estranha e maravilhosa era aquela? Uma vontade tamanha de aconchegar-se em seus braços e dali jamais sair.

“E qual é a vida que quer para si?”

“Uma onde eu possa decidir por quem me apaixonar.”, confessou sentindo como se o coração fosse lhe saltar pela boca.

E sem mais nada a dizer, Marcelo tocou seus lábios. Seu beijo era doce enquanto os lábios moviam-se suavemente nos seus. Ela então se entregou ao momento, sem importar-se com nada, nem mesmo se seu pai cruzasse aquelas portas e a levasse embora. Nunca havia sentido algo como aquilo, que fazia seu sangue borbulhar nas veias e as pernas bambearem. Se morresse naquele momento, morreria feliz. Ele a envolveu em seus braços, trazendo-a mais para perto, aconchegando-a em seu peito como uma criança desprotegida.

Seis meses depois e com muita persuasão, Sophia conseguiu com que seu pai vendesse a fazenda e se mudassem para o rancho — o que resultou no adiamento do casamento diversas vezes —, e nesse meio tempo, ela e Marcelo encontravam-se às escondidas na velha cabana. Mas aquela situação estava desgastante demais e uma hora alguém acabaria descobrindo o caso. E foi então que, na véspera de seu casamento, Marcelo apareceu no meio da noite e a levou embora. Desta vez não foram para a velha cabana, que estava totalmente destruída por causa da cheia do rio, e sim para uma casa na beira do lago. Esta era maior e mais aconchegante. Parecia ser nova e ainda era possível sentir o cheiro da madeira recém-polida.

“Construí esta casa especialmente para você, minha Sophia.”, disse ele enquanto a ajudava a descer do cavalo.

“Ela é linda, Marcelo!”

Pegando-a no colo, Marcelo a levou para o quarto e a deitou sobre a cama forrada com lençóis de seda. Aquela noite seria única. A noite mais esperada por ambos, o momento de se entregarem por completo e unirem-se a um único sentimento. O amor.

***

O vento continuava a adentrar o quarto, um assovio agourento e contínuo. Chamou por Marcelo, mas não houve nenhuma palavra de resposta. Vestindo o roupão, foi até a janela e afastou a cortina. O lago estava calmo e refletia a luz da lua como um espelho. Chamou por Marcelo mais uma vez e teve apenas o silêncio como resposta. Pela primeira vez, desde que chegaram aquela casa, Sophia sentiu medo. Um medo que a corroía por dentro e arranhava os ossos. Correu então para a porta e algo inesperado aconteceu. Ela não abriu. Forçou a maçaneta, girou a chave e nada. Inércia total. Mas o que é que está acontecendo? Gritou por socorro, mas foi inútil. Marcelo tinha construído a casa às margens do lago, longe de tudo e todos. Prezou tanto pela privacidade que se esquecera da segurança.

Olhou ao redor, procurando por algo que pudesse ajuda-la a arrobar a porta. Pegou um lampião sobre a cadeira e voltou para a porta mais uma vez, erguendo-o a sua frente. Então viu uma sombra pairar diante da porta de vidro e por pouco não deixou que o lampião caísse. Ela deveria se sentir aliviada ao ver que a sombra pertencia a Marcelo, mas seus olhos indicavam que alguma coisa não estava bem. Sua boca estava contorcida e havia dor em seus olhos. Estaria ele ferido? Forçou a maçaneta mais uma vez, porém a porta continuava a resistir. Agitou os braços diante dos olhos dele, mas era como se ele não a visse. Gritou, e seu hálito embaçou o vidro, mas Marcelo parecia não escutá-la.

Marcelo continuava a esmurrar a porta, as lágrimas desciam pelo seu rosto e a dor o consumia. Foi então que ela seguiu a direção de seus olhos. Num primeiro momento, ficou chocada, mas depois foi como se o frio que a cercava se tornasse uma brisa de verão. Balançou a cabeça incrédula, incapaz de acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo. Seu corpo jazia sem vida sobre a cama, os lábios estavam escuros, assim como as marcas ao redor dos olhos. No pescoço havia uma mancha vermelha e o lençol estava banhado com seu próprio sangue.

***

“Logo a diante, vocês verão o rancho que pertenceu ao Barão Cristóvão Braz. O lugar foi fechado logo após a morte do Barão e reaberto anos mais tarde.”, disse o guia aos turistas que o seguiam com seus mapas e blocos de anotação. “Ali, durante muitos anos, existia uma velha cabana, que serviu de abrigo a saqueadores e mascates.”

O grupo continuou por mais alguns metros até que uma das turistas parou de repente.

“Senhor Júlio, e aquela casa ali, na beira do lago? Ela tem algum fator histórico para a região?”

“Sim, muito.”, disse o homem de má vontade. Detestava quando alguém do grupo atentava para aquela casa. Ele pigarreou e com um sorriso amarelo, matou a curiosidade da mulher. “Reza a lenda que há cinquenta anos a filha do Barão, que na época tinha apenas 17 anos, fugiu com um dos empregados do rancho às vésperas do seu casamento. Desgostoso com a afronta da jovem, seu noivo se enfureceu e ofereceu uma recompensa generosa a quem conseguisse encontra-los. Os meses se passaram e então, em uma de suas andanças, o tal noivo descobriu o esconderijo dos dois e resolveu por si mesmo, dar fim àquela desonra. Até hoje não se sabe ao certo se foi mesmo isso o que aconteceu, mas há quem diga que à noite é possível ouvir os lamentos da mulher. Ninguém jamais ousou demolir aquela casa.”

“Nem mesmo eu.”, disse Júlio a si mesmo. Ainda era assombrado todas as noites pelos gritos de dor enquanto via os últimos lampejos de vida deixarem os olhos de Sophia.