Ao
longe, o piar da coruja era acompanhado pelo vento que fazia as árvores
chacoalhar e seus galhos arranharem os vidros da janela. Sophia levantou da
cama e fechou as cortinas, mas nem assim foi capaz de abafar o assovio do vento
que atravessava as frestas da janela. Não se arrependia de ter feito o que fez,
tinha pena somente de Júlio. Júlio era um bom rapaz. O primogênito da família
Buarque voltara recentemente à capital, depois de anos estudando Direito na
Europa, e não tinha culpa do tal casamento arranjado que seus pais
arquitetaram. Ele estava tão constrangido com a situação quanto Sophia.
Viram-se muito pouco durante a infância e mal sabiam um sobre o outro. Eram
completos estranhos que estavam prestes a viver uma vida matrimonial, mas sem
afeto. Ele merecia alguém que gostasse dele de verdade. Mas infelizmente aquela
pessoa não poderia ser ela, pois seu coração já era de outro. Outro que o
arrebatou desde o primeiro momento em que se olharam. Olhou pela janela e não
pode conter o sorriso ao lembrar-se do dia em que conheceu Marcelo.
Era
domingo e estava quente como nunca naquela tarde. O suor descia-lhe pelas
costas enquanto caminhava pelo rancho recém-adquirido por seu pai, arrebatado
em um leilão hipotecário. O Barão dos Hectares, como era chamado pelo povo
daquela cidade do interior de Minas Gerais, era temido pela maioria deles.
Visto como um homem cruel e vil, Cristóvão não media esforços quando o assunto
era dinheiro. Não tinha pena das famílias que despejou de suas casas,
jogando-as na sarjeta, somente para apossar-se de suas terras e seu gado. Para
ele, tudo era negócio. Sentia-se envergonhada ao sair nas ruas e ouvir os
comentários dos populares a respeito de seu pai, que levado por sua ganância
desenfreada, semeou o ódio no coração daquelas pessoas. Poder, dinheiro,
posses; era somente nisso que o Barão dos Hectares pensava.
Preferia
andar debaixo do sol daquela infernal tarde de verão a ter que ouvir seu pai e
a família Buarque — dona de uma das maiores refinarias de açúcar da cidade — tramarem
sobre seu futuro. Não gostava nem desgostava daquela gente, mas não lhe
agradava nenhum pouco saber que sua vida estava sendo decidida entre um copo de
licor e outro. No entanto, sabia o que estava por trás de tudo aquilo. E era
isso que a deixava ainda mais desgostosa. Ganancioso como era, Cristóvão via
naquela união a oportunidade de expandir ainda mais seus negócios e assim
avolumar consideravelmente suas cifras. Mesmo que para isso, tenha que passar
por cima de tudo e todos mais uma vez. Inclusive da felicidade de sua única
filha.
Descalçou
os sapatos e colocou os pés na água fria e escura, refrescando-se. Com a ponta
dos dedos, acariciou a terra úmida na margem do rio, perguntando-se se seu
destino seria acabar como sua mãe, uma mulher cheia de ideais que sonhava um
dia se tornar professora, mas que por causa das dificuldades de sua família foi
forçada a casar-se com um homem que jamais amou e que morrera de desgosto,
cansada das atitudes machistas do marido que nem mesmo a permitia olhar pela
janela. Sentiu as lágrimas correrem pelo rosto rubro e febril pelo calor da
tarde, preferindo encarar a forca a aquilo. Então uma ideia louca e tentadora lhe
passou pela cabeça. Não tinha nada a perder, já que sua vida pouco importava
para o Barão. Ela nada mais era que uma moeda de troca para o homem que jamais
lhe demonstrou afeto. Talvez, se não tivesse nascido mulher, teria muito mais
valor.
Despindo-se
rapidamente, entrou no rio. Só não contava que sua profundidade fosse tamanha e
seus pés mal tocavam o fundo. Debatendo-se como um animal no abatedouro, sentiu
suas forças esvaírem e seu corpo afundou lentamente para a escuridão. Seus
olhos ficaram abertos, tempo suficiente, para ver as últimas bolhas de ar,
escaparem de sua boca entregando-se ao fim.
Morrer
não era tão ruim assim como diziam. Foi rápido e não lhe causara dor alguma. Ainda
podia sentir o calor do sol, ouvir o canto dos pássaros e até mesmo o relinchar
dos cavalos. Era o paraíso! Seus pés tocavam a grama verde e sedosa enquanto
seus cabelos esvoaçavam ao vento, como se cada parte do seu corpo ansiasse por
aquele momento de alforria. Sentia-se leve, feliz. Finalmente estava livre da tirania
de seu pai e sua ganância. Mas logo tudo ficou escuro novamente. Sentiu uma dor
lhe queimar o peito e tudo ficou mais intenso. Agora, até o perfume das flores
trazido pela brisa lhe penetravam as narinas como ácido.
“Moça?
Moça? Você está bem?”
Abriu
os olhos e então o viu. Não sabia ao certo o que sentiu naquele momento. Um
calor subia-lhe pelas pernas alojando-se no peito, fazendo o coração bater tão
rápido quanto as asas de um colibri. Seus olhos castanhos a fitavam com uma
preocupação patente, enquanto suas mãos a seguravam impedindo-a de se mexer.
Ele cheirava a terra e esterco. E estranhamente percebeu que aquele era o
melhor perfume que já sentira em toda a sua vida. Quem sabe talvez estivesse
mesmo morta e ele fosse um anjo? Um anjo de pele bronzeada e lábios rosados com
a mais bela voz que já ouvira.
Perdera-se
naquele olhar por um período incalculável. Era como se tudo a sua volta não
tivesse mais a mínima importância. O canto dos pássaros, o relinchar dos
cavalos, nem mesmo o cheiro das flores era tão magnífico e atraente como a
presença daquele desconhecido. Ele então tocou seu rosto, alisando suas
bochechas coradas. Seu toque era suave, apesar de a mão ser um tanto quanto
avantajada e calejada, e de uma cadência acolhedora. Jamais havia sido tocada
daquela maneira, exceto por sua mãe. A única pessoa que a amou de verdade.
Um
vento frio varreu os campos e seu corpo estremeceu. Lembrou-se então do que
tinha feito — ou do que tentara fazer — e sentiu mais uma vez as lágrimas lhe
escorrerem pela face. Dentro em breve, o Barão sairia a sua procura e selaria
de vez seu destino, amarrando-a a um homem que jamais amaria. Levantou-se
rapidamente, vestindo suas roupas e saiu em disparada pelas margens do rio,
deixando os sapatos e o belo rapaz para trás. Tudo o que mais queria era ir
para longe, para onde seu pai jamais pudesse encontra-la. Definitivamente, não
queria ter o mesmo fim que sua mãe.
“Espere!”,
ouviu o rapaz gritar enquanto os cascos do cavalo batiam no chão, se aproximando
rapidamente. “Aonde você vai?”
“Não
tenho tempo para explicar nada agora. Eu preciso ir.”
“Mas
para onde você vai?”
“Para
qualquer lugar longe daqui.”
Ele
a ultrapassou e parou, atravessando o cavalo em seu caminho, estendendo-lhe a
mão.
“Suba,
eu te levo.”
Juntos
seguiram a cavalo, atravessando as pastagens até chegar ao outro lado do rio,
onde uma cabana caindo aos pedaços lhes serviria de abrigo durante aquela noite
fria. O lugar não chegava nem perto das acomodações com a qual estava acostumada,
mas sentia-se estranhamente segura ali, ao lado daquele completo desconhecido.
“Como
você se chama?”, perguntou Sophia, encolhida sob os cobertores enquanto o via
atiçar o fogo na lareira com o fole.
“Marcelo.”,
disse ele colocando mais lenha no fogo. “E você deve ser a senhorita Sophia,
acertei?”
“Sim.”,
respondeu ela já habituada aquele tipo de situação. Não havia uma única pessoa
naquela cidade que não soubesse o seu nome.
“Do
que está fugindo, senhorita?”
“Sophia.
Por favor, me chame de Sophia.”
“Então,
do que estava fugindo, Sophia?”,
perguntou ele sorrindo enquanto a entregava uma caneca com um caldo verde e
ralo.
“Da
vida. Da vida que não quero para mim.”
Ele
tocou seu queixo, levantando seu rosto e olhando no fundo dos seus olhos.
Sentiu mais uma vez o calor lhe subir pelas pernas, causando-lhe palpitações.
Que sensação mais estranha e maravilhosa era aquela? Uma vontade tamanha de
aconchegar-se em seus braços e dali jamais sair.
“E
qual é a vida que quer para si?”
“Uma
onde eu possa decidir por quem me apaixonar.”, confessou sentindo como se o
coração fosse lhe saltar pela boca.
E
sem mais nada a dizer, Marcelo tocou seus lábios. Seu beijo era doce enquanto
os lábios moviam-se suavemente nos seus. Ela então se entregou ao momento, sem
importar-se com nada, nem mesmo se seu pai cruzasse aquelas portas e a levasse
embora. Nunca havia sentido algo como aquilo, que fazia seu sangue borbulhar
nas veias e as pernas bambearem. Se morresse naquele momento, morreria feliz. Ele
a envolveu em seus braços, trazendo-a mais para perto, aconchegando-a em seu
peito como uma criança desprotegida.
Seis meses depois e com muita persuasão, Sophia conseguiu com que seu pai vendesse
a fazenda e se mudassem para o rancho — o que resultou no adiamento do
casamento diversas vezes —, e nesse meio tempo, ela e Marcelo encontravam-se às
escondidas na velha cabana. Mas aquela situação estava desgastante demais e uma
hora alguém acabaria descobrindo o caso. E foi então que, na véspera de seu
casamento, Marcelo apareceu no meio da noite e a levou embora. Desta vez não
foram para a velha cabana, que estava totalmente destruída por causa da cheia
do rio, e sim para uma casa na beira do lago. Esta era maior e mais
aconchegante. Parecia ser nova e ainda era possível sentir o cheiro da madeira
recém-polida.
“Construí
esta casa especialmente para você, minha Sophia.”, disse ele enquanto a ajudava
a descer do cavalo.
“Ela
é linda, Marcelo!”
Pegando-a
no colo, Marcelo a levou para o quarto e a deitou sobre a cama forrada com
lençóis de seda. Aquela noite seria única. A noite mais esperada por ambos, o
momento de se entregarem por completo e unirem-se a um único sentimento. O
amor.
***
O
vento continuava a adentrar o quarto, um assovio agourento e contínuo. Chamou
por Marcelo, mas não houve nenhuma palavra de resposta. Vestindo o roupão, foi
até a janela e afastou a cortina. O lago estava calmo e refletia a luz da lua como
um espelho. Chamou por Marcelo mais uma vez e teve apenas o silêncio como
resposta. Pela primeira vez, desde que chegaram aquela casa, Sophia sentiu
medo. Um medo que a corroía por dentro e arranhava os ossos. Correu então para
a porta e algo inesperado aconteceu. Ela não abriu. Forçou a maçaneta, girou a
chave e nada. Inércia total. Mas o que é que está acontecendo? Gritou por socorro,
mas foi inútil. Marcelo tinha construído a casa às margens do lago, longe de tudo
e todos. Prezou tanto pela privacidade que se esquecera da segurança.
Olhou
ao redor, procurando por algo que pudesse ajuda-la a arrobar a porta. Pegou um
lampião sobre a cadeira e voltou para a porta mais uma vez, erguendo-o a sua
frente. Então viu uma sombra pairar diante da porta de vidro e por pouco não deixou
que o lampião caísse. Ela deveria se sentir aliviada ao ver que a sombra pertencia
a Marcelo, mas seus olhos indicavam que alguma coisa não estava bem. Sua boca
estava contorcida e havia dor em seus olhos. Estaria ele ferido? Forçou a maçaneta
mais uma vez, porém a porta continuava a resistir. Agitou os braços diante dos
olhos dele, mas era como se ele não a visse. Gritou, e seu hálito embaçou o
vidro, mas Marcelo parecia não escutá-la.
Marcelo
continuava a esmurrar a porta, as lágrimas desciam pelo seu rosto e a dor o
consumia. Foi então que ela seguiu a direção de seus olhos. Num primeiro momento,
ficou chocada, mas depois foi como se o frio que a cercava se tornasse uma
brisa de verão. Balançou a cabeça incrédula, incapaz de acreditar que aquilo
estava mesmo acontecendo. Seu corpo jazia sem vida sobre a cama, os lábios
estavam escuros, assim como as marcas ao redor dos olhos. No pescoço havia uma
mancha vermelha e o lençol estava banhado com seu próprio sangue.
***
“Logo
a diante, vocês verão o rancho que pertenceu ao Barão Cristóvão Braz. O lugar
foi fechado logo após a morte do Barão e reaberto anos mais tarde.”, disse o
guia aos turistas que o seguiam com seus mapas e blocos de anotação. “Ali,
durante muitos anos, existia uma velha cabana, que serviu de abrigo a saqueadores
e mascates.”
O
grupo continuou por mais alguns metros até que uma das turistas parou de
repente.
“Senhor
Júlio, e aquela casa ali, na beira do lago? Ela tem algum fator histórico para
a região?”
“Sim,
muito.”, disse o homem de má vontade. Detestava quando alguém do grupo atentava
para aquela casa. Ele pigarreou e com um sorriso amarelo, matou a curiosidade
da mulher. “Reza a lenda que há cinquenta anos a filha do Barão, que na época
tinha apenas 17 anos, fugiu com um dos empregados do rancho às vésperas do seu casamento.
Desgostoso com a afronta da jovem, seu noivo se enfureceu e ofereceu uma
recompensa generosa a quem conseguisse encontra-los. Os meses se passaram e
então, em uma de suas andanças, o tal noivo descobriu o esconderijo dos dois e
resolveu por si mesmo, dar fim àquela desonra. Até hoje não se sabe ao certo se
foi mesmo isso o que aconteceu, mas há quem diga que à noite é possível ouvir
os lamentos da mulher. Ninguém jamais ousou demolir aquela casa.”
“Nem
mesmo eu.”, disse Júlio a si mesmo. Ainda era assombrado todas as noites pelos
gritos de dor enquanto via os últimos lampejos de vida deixarem os olhos de
Sophia.