2 de outubro de 2016

Isabella - Capítulo 7: Enfim, boas notícias



Eu mal consegui pregar os olhos durante a noite. Na companhia do controle remoto, zapeei pelos canais a procura de notícias mais atualizadas sobre o acidente de avião, mas não havia nada de novo. Nenhum progresso nas buscas. Durante o expediente também não foi diferente. Entre uma aula e outra, acessei aos sites dos principais jornais internacionais, mas até mesmo eles estavam sem novidades. Minha única opção foi esperar até o horário do meu almoço, quando finalmente iria ao consulado. Já havia deixado tudo resolvido no trabalho também. Conversei com Caio, meu chefe, e lhe expliquei toda a historia. Claro que ele não acreditou no início, mas depois de alguns minutos e ver uma fotografia de Friedrich, ele finalmente se convenceu de que eu era a cópia fiel do rei.
— Vou ter que acrescentar ao currículo da ONG que uma de nossas voluntárias era a filha de um rei. — ele riu, ainda balançando a cabeça, incrédulo, diante da fotografia na tela de seu laptop. — Como a sua mãe pode esconder isso de você por tanto tempo?
— Talvez porque ela quisesse evitar reações como essa. — nós rimos e logo depois fui dispensada e liberada para resolver tudo o que precisava sem me preocupar em voltar a tempo para o fim do expediente.

Depois de uma madrugada praticamente insone e nenhuma novidade sobre o acidente, cheguei ao consulado. Fui submetida a uma série de entrevistas, onde avaliaram o meu nível de inglês, minha condição financeira e os motivos que me levaram a fazer aquela viagem. Eu não podia falar que era a filha do rei. O que certamente tornaria tudo menos burocrático e mais rápido. Mas minha certidão de nascimento tinha um espaço em branco onde o nome de Friedrich deveria estar escrito e com certeza as cartas trocadas pelos meus pais, não comprovaria nada. Porém, felizmente consegui a autorização do meu visto. Eu estava liberada para ir a Ladônia.
A ida ao consulado levou menos tempo do que eu imaginava, o que foi ótimo, já que ainda precisava comprar a minha passagem e resolver algumas coisas com Alice e sua mãe. Segui em direção a Praça XV e aguardei. A próxima barca só sairia às quatro da tarde. Comprei umas revistas na banca de jornal e fiz um lanche na lanchonete do terminal sabendo que aquela era a minha primeira refeição do dia. E não era nada saudável.
Em apenas um mês, toda a minha vida havia mudado. Perdi minha mãe para o câncer, o que me fez rever os meus hábitos, mas ganhei um pai. Pai este que durante anos não nutri esperanças de conhecer e que fazia um péssimo julgamento a seu respeito. Nosso primeiro (e único) encontro não foi em um momento de alegria. Minha mãe tinha acabado de morrer e eu levei um bom tempo para processar a informação. Depois de tantos anos sem ao menos saber o nome, descobrir quem é o seu pai e que ele nada mais é que o rei de uma nação é de fazer qualquer um tremer nas bases. O irônico nisso tudo é que antes eu não queria ouvir falar em partir para Ladônia e agora, aqui estava eu, disposta a fazer de tudo para estar perto de Friedrich e lhe dar apoio neste momento. Eu queria que alguém tivesse feito isso por mim. Não que Ângela e Alice não o tivessem feito. Eu sou grata a elas por isso, sério, mas não era a mesma coisa.
E agora tinha Laura. Aquela mulher mexeu comigo. Havia algo nela que eu não sabia explicar. Ela me transmitia paz e no meio do caos em que eu me encontrava quando nos conhecemos, ela me ofereceu conforto com suas poucas palavras. Deus, permita que ela esteja bem. Ofereci uma prece silenciosa e segui com os outros passageiros para a plataforma de embarque quando os portões se abriram.
Uma brisa fria soprava do mar e uma chuva forte caiu sobre nós. Sempre tive muito medo das chuvas que caíam durante a travessia da barca. Não é o meu meio de transporte favorito, mas como estava tendo uma manifestação que fechou toda a Avenida Presidente Vargas, não queria passar horas fechada dentro de um ônibus lotado.
— Droga! Maldita mania de trocar de bolsa. — praguejei inconformada com a ideia de me molhar toda por ter esquecido o guarda-chuva na outra bolsa.
— Esse lugar está vago?
Olhei para cima e vi Matheus de pé. Seu terno claro estava com o lado direito salpicado de gotas de chuva. Ele ajeitou a mochila nos ombros aguardando a minha resposta.
— Eu estava sentado na janela, mas a chuva estava forte demais. — explicou, justificando o motivo para a mudança de lugar. — Então, posso?
— Claro. A barca é um local público. — grunhi, agradecendo por as cadeiras serem individuais e pelos braços que separavam umas das outras. O que limitaria seus movimentos caso ele tentasse algo ousado.
— Obrigado.
Eu não estava interessada em uma conversa amigável e informal com Matheus, então pesquei meu iPod do fundo da bolsa e tapei meus ouvidos com os fones, colocando o volume mais alto que os meus tímpanos pudessem suportar. Pelo canto do olho, percebi que ele me encarava e cada virada de página que eu dava em minha revista era seguida por seus olhos atentos. Continuei ignorando-o até que toda aquela avaliação tornou-se insuportável.
Tirei os fones.
— O que foi? — não esperava que meu tom soasse tão rude, mas depois do que Alice me contou ontem, isso era o máximo que ele teria de mim.
— Estou preocupado com você.
— Sério? — sarcasmo nível máximo. — Não vou tentar suicídio me jogando de uma barca em movimento porque o meu namorado, agora ex, me traiu com a garota que eu mais detesto na vida. Por me fazer parecer ridícula na frente da faculdade inteira ao ser vista na companhia dele depois de tudo o que ele fez. — meu tom subiu umas oitavas e alguns passageiros viraram as cabeças para ver o que estava acontecendo. — Então, poupe-me das suas preocupações. Elas são totalmente desnecessárias.
— Vejo que você e Alice conversaram, então. — ele abaixou a cabeça examinando as mãos. — Eu não queria que aquilo tivesse acontecido. Eu te expliquei o que houve...
— Não explicou, não. Você mentiu. — acusei. A raiva dominando meus olhos. — Você sabia o que havia acontecido com a minha mãe e mesmo assim fez o que fez. Foi imperdoável, Matheus.
— Podemos, ao menos, sermos amigos?
— Não acho que você tenha o direito de me pedir isto.
— Por que não? — questionou ele puxando o fone que eu havia acabado de colocar no ouvido. — Acho que esta é a única relação que se encaixa bem para nós. Você sabe disso.
— Vou pensar no assunto. — prometi. — Mas não vai ser hoje e nem agora. Tenho coisas mais importantes para resolver e acho que vamos ficar um bom tempo sem nos ver.
— Do quê você está falando?
— Nada. — desconversei colocando os fones de volta no ouvido e aumentando o volume.

— Não! — exclamei irritada olhando para a tela do computador. — Isto não pode estar acontecendo.
Ângela entrou no escritório — o quarto de hóspedes que minha mãe havia convertido em escritório anos atrás para trabalhar e guardar todos os seus documentos — com um pano de pratos no ombro enxugando as mãos no avental.
— O que houve?
— Todos os voos para Ladônia foram suspensos e não há previsão de quando estarão disponíveis. — joguei o corpo para trás, batendo as costas com força no encosto da cadeira. — Só pode ser algum tipo de castigo.
— Não diga isso, querida. Pode ser alguma pane no site da companhia. — disse Ângela massageando meus ombros. Suas mãos cheiravam a alho e cebola e eu me senti culpada por ela estar se encarregando da minha alimentação com mais frequência que o necessário. — Por que não descansa um pouco e tenta novamente mais tarde?
Acatei ao seu pedido e desliguei o computador. Mas acontece que, nem naquele dia e em nenhum outro, ao longo da semana, eu consegui comprar o raio da passagem. Continuei acompanhando o andamento das buscas pelo noticiário, mas o nome de Laura não fora citado uma única vez naquela semana. Finalmente, na sexta-feira, as equipes de buscas tinham localizado o grupo que se abrigara na mata. Uma imagem feita no momento do resgate fora passada enquanto o jornalista narrava os acontecimentos. A cada pessoa que saía em meio às árvores acompanhadas pelos membros da equipe de salvamento, uma salva de palmas eclodia e uma equipe médica de prontidão ia ao encontro das vítimas.
Minhas esperanças já estavam por um fio, quando finalmente o jornalista dera a notícia que me perturbara desde que soube do acontecido.
— Após dias de incansáveis buscas, finalmente a rainha Laura de Ladônia foi encontrada. — disse o repórter com empolgação. — Apesar de alguns ferimentos superficiais e muito debilitada pelos dias de refúgio na mata fechada, a rainha passa bem. Ela já foi medicada e hoje a noite ainda partirá em um avião particular da família real para Ladônia. Agora vamos falar com Melissa Fortes que está em frente ao Palácio di Plázio e nos dará mais informações.
A imagem foi cortada e o link para a outra repórter foi aberto. Mesmo com a chuva forte que caía a população ainda se aglomerava diante do palácio. Cartazes com frases de apoio a família real misturavam-se aos cânticos entoados pelo povo. A repórter surgiu diante da tela, abrigada em uma capa de chuva amarela. 
— A expectativa pela chegada da rainha é grande aqui, Otto. — disse ela, com um sorriso. — Segundo o boletim médico, a rainha passa bem e apenas um repouso e descanso lhe foram receitados. A rainha Laura voltava de uma viagem de dois dias ao Oriente Médio, onde realizava sua costumeira compra de tecidos. Ela declarou que o incidente não a impedirá de retornar ao continente asiático outras vezes e que espera voltar lá em breve, já que toda a sua bagagem foi perdida no acidente. — a repórter riu e eu me peguei rindo com ela, embora estivesse com o rosto umedecido pelas lágrimas. — Ela não perde o bom humor nunca. É por isso que ela é uma das pessoas mais queridas de seu país. É com você, Otto.

1 de outubro de 2016

Isabella - Capítulo 6: Dias de tensão



— Calma, Bella. Fala devagar. Eu não estou conseguindo acompanhar. — pediu Alice, do outro lado da linha. — Quando foi que isso aconteceu? Tem certeza mesmo que era ela?
— Mas é claro que tenho, Alice! Quantas Laura Zorcky, você conhece? Não estou louca. Foi o nome dela que o jornalista disse. — afirmei, abrindo a porta do meu apartamento e disparando para o meu quarto.
Peguei a mala de viagem no alto do meu armário e a abri sobre a cama despejando aleatoriamente minhas roupas ali dentro, enquanto desistia de equilibrar o celular entre o ouvido e o ombro, colocando-o no viva voz. Eu não fazia a mínima ideia de como chegaria à Ladônia, mas precisava fazer alguma coisa, já que Friedrich não retornava as minhas ligações. A cabeça dele devia estar a mil e eu não era a melhor pessoa para julgá-lo. Lembro que quando minha mãe morreu, eu não queria falar com ninguém. Queria que o mundo esquecesse a minha existência.
— Mas se fosse mesmo ela, o seu p... Quer dizer, o rei Friedrich, já teria entrado em contato, não?
— Não se ele estiver ocupado com as equipes de buscas. — falei desabando na cama, sentindo um aperto profundo e desconhecido no peito.
Laura e eu mal havíamos trocado meia dúzia de palavras quando nos conhecemos, mas ela me parecia ser uma pessoa boa e não merecia um final trágico como aquele. Assim como minha mãe, era muito injusto ela ser arrancada precocemente de sua família de uma maneira tão violenta.
Pensei em Friedrich e em tudo o que ele deveria estar passando naquele momento. Apesar de ele e minha mãe terem tido uma história no passado, percebi que ele amava a esposa. O sentimento entre eles era mútuo e, de certa forma, bonito de se ver. Uma lágrima tímida rolou em meu rosto, solidarizando-se com o sofrimento de Friedrich. Queria poder segurar em sua mão naquele momento, dar-lhe o apoio que ele precisava. Mas eu não estava lá! Ainda.
— Bella, você está aí? — chamou Alice, sua voz distorcida saindo do viva voz.
— Sim. Estou. — respondi num arremedo de voz.
— Ô, amiga... — Alice ficou em silêncio e percebi que, assim como eu, a notícia foi um baque para ela também. — Chego aí em cinco minutos.
Enquanto aguardava a chegada de Alice, terminei de arrumar a mala. A todo o instante as imagens que vi na TV na cantina da faculdade eclipsavam a minha visão. O avião caído, todo o lado direito da aeronave não era mais que um monte de metal retorcido e disforme, as fotografias das vítimas, os depoimentos dos sobreviventes... Um arrepio percorreu meu corpo. Liguei a TV do meu quarto na esperança de que o Jornal Nacional desse mais algumas informações sobre o acidente. Antes que as notícias do Brasil e do mundo fossem dadas, ainda precisei aguentar alguns minutos de novela das sete. Impaciente, fui até a cozinha preparar um café na cafeteira que Friedrich que me deu — o único presente dele que eu havia desembalado. Confesso que não fosse o meu vício pela cafeína, a máquina continuaria guardadinha no mesmo lugar.
Muitos comerciais depois, finalmente ouvi a familiar chamada do jornal e voltei para o quarto correndo. Já de cara, Willian Bonner, âncora do jornal, começou com a notícia sobre o acidente em Edimburgo e um link para o correspondente local foi aberto. O repórter começou com um resumo detalhado do acidente e que o laudo da caixa preta só ficará pronto no final do mês, mas que os técnicos não descartavam a possibilidade de que uma falha elétrica tenha sido a causa do acidente. Em meio às informações, finalmente ouvi o que mais me incomodava desde o momento em que soube do acontecido.
— As famílias das vítimas continuam aguardando pela divulgação oficial da lista de passageiros. — disse o jornalista. — A lista só saiu hoje, no final da tarde, e será anunciada agora a noite, através de um porta-voz da companhia, em uma coletiva marcada para as duas horas da manhã, horário local. Estima-se que, a bordo, havia cento e cinquenta passageiros. Entre eles: dois pilotos e cinco membros da tripulação. Até o momento, apenas vinte vítimas fatais foram confirmadas, cento e quinze feridos e quinze ainda desaparecidos. — enquanto o jornalista narrava, uma imagem aérea, acredito eu que, feita no inicio da tarde, era passada. — As equipes de buscas ainda estão circulando a área, mas a mata fechada atrapalha na localização das vítimas sobreviventes que se refugiaram na floresta.
Mais uma vez os nomes e as idades das vítimas fatais foram anunciados e foi com alívio que constatei que Laura não estava naquela relação. Mas ela tampouco estava na listagem dos sobreviventes feridos. Minha última esperança fiava-se no fato de que, talvez, o grupo que procurou abrigo na mata estivesse bem. Fisicamente, pelo menos. Como que para confirmar as minhas esperanças, o repórter continuou:
— Acredita-se também que a rainha Laura Zorcky seja uma das sobreviventes. O rei Friedrich Zorcky veio pessoalmente à Edimburgo e está participando ativamente junto com as equipes de busca. O povo de Ladônia está fazendo uma vigília diante do Palácio di Plázio, em oração pela vida da rainha.
 Naquele momento, Alice entrou no meu quarto. O rosto tão pálido quanto às velas do castiçal da mesa de jantar. Com os olhos cheios d'água, ela venceu a distância entre nós e me abraçou.
— Sinto muito, amiga.
Eu não sabia o que dizer. Laura não era nada minha, exceto a esposa de meu suposto pai e rainha de uma nação que a idolatrava como uma santa. Mas ainda assim, senti muita afeição por aquela mulher, que lembrava e muito a minha mãe, quando nos conhecemos. Alice afrouxou o abraço e afastou-se de mim. Seus olhos estavam úmidos.
— Ela está bem. — eu disse. Mas parecia que queria convencer a mim mesma disso.
— Eu sei.
— Então chega dessa choradeira e me ajude a levar esta mala para a sala. Vou deixar as chaves do apartamento com vocês. Amanhã vou ao consulado de Ladônia dar entrada no meu visto e... — calei minha tagarelice quando percebi que Alice não havia saído do lugar e eu estava falando sozinha e apenas as paredes do corredor pareciam me ouvir. Olhei para ela que encarava o chão, incapaz de olhar para mim. — Alice, o que houve?
Sabe quando você tem a impressão de estar vivendo um déjà vu? Não sei bem, mas tinha a sensação de ter visto aquela mesma reação não fazia muito tempo. Mas continuei aguardando por uma resposta dela, que parecia estar mais interessada nas unhas dos pés, pintadas num vermelho sangue, do que em me responder.
— Eu nem sei por onde começar, Bella. — o miado de um gato teria sido mais alto que o seu tom. — Para ser sincera, não queria ser eu a portadora desta notícia, mas sou sua amiga e me chateia ver as pessoas te sacaneando.
Rebobinando os acontecimentos do meu dia até aquele momento, sou transportada até a cantina, mais precisamente a uma mesa do fundo, onde Matheus e eu nos encontramos no final da tarde. Foi uma conversa semelhante, mas que não chegou a ser concluída devido à notícia que vi na TV e precisei sair de lá às pressas. Matheus não chegou a me dizer quem era a tal garota e alguma coisa me dizia que Alice sabia quem era. Daí, o que Matheus disse, começou a fazer sentido: Você não falou com Alice nos últimos dias, suponho.
— Alice, se tem alguma a ver com o Matheus, pode falar. Nós conversamos hoje.
— Eu não acredito que aquele safado teve a coragem de fazer isso com você. — falou irritada. Percebi que seus punhos se fecharam ao lado do corpo. — Eu disse a ele que contaria a você se ele não tomasse uma atitude. Mesmo sabendo do que aconteceu com a sua mãe, aquele cretino teve a coragem de sair com a Sheila.
Foi como levar um tapa sem mão ouvir o que Alice acabava de me contar. Durante o nosso encontro e até mesmo ao telefone, Matheus deu a entender que não sabia do que havia acontecido com a minha mãe. E agora fico sabendo que ele sempre soube! Então estava explicado a caixa de chocolates e o olhar mordaz de Rita hoje.
— Ele sabia?
— É claro que sabia, Bella. Todos os nossos amigos e alguns conhecidos também. Sua mãe era muito querida por lá, você sabe. Alguns até ficaram mais tristes por não poderem mais ir a uma festa organizada por ela do que por sua morte propriamente dita.
— E eu achando que estava sendo cruel por terminar com ele. Quanta estupidez!
— Você não sabe como fico feliz em saber que vocês terminaram. — disse ela, incapaz de esconder sua satisfação.
Não era segredo para ninguém que Alice não via meu relacionamento com Matheus com bons olhos. Eles já haviam namorado há algum tempo e, mesmo com todas as recomendações e contra e indicações de Alice, resolvi investir. Resultado: quebrei a cara bonito. Ela me lançou um olhar do tipo eu te avisei e colocou as mãos na cintura.
— Tá bom. Você estava certa. Satisfeita?
— Não. Mas você bem que poderia me dar ouvidos de vez em quando. — ela balançou a cabeça e pegou a minha mão. — Agora me conte, que história de acidente é essa.

Alice ficou boquiaberta com o que lhe contei e ela mesma estava chocada por não ter visto os noticiários nos últimos dias. Nem mesmo Ângela havia comentado (e olha que ela é a maior noveleira que eu conheço!). Assim como eu, Alice estava atolada de trabalhos da faculdade e estava se desdobrando para cobrir uma licença no trabalho. Uma das professoras precisou fazer uma cirurgia de última hora, pegando todos de surpresa, inclusive Alice, ao anunciarem que ela assumiria as suas turmas e as da colega afastada até que ela retornasse.
Contei a ela também dos meus planos de ir para Ladônia o quanto antes, tão logo meu visto fosse liberado e que por esta razão, não queria perder tempo com atividades demoradas como fazer as malas.
— Eu preferia que você estivesse indo para lá num outro contexto. — confessou Alice, servindo o café em duas xícaras enquanto eu tirava um tabuleiro de pães de queijo do forno. — Chegar lá assim, no meio dessa confusão não vai ser nada legal, ainda mais com o rei longe de casa. O que as pessoas vão pensar quando a vir chegando com uma mala e bradando aos quatro ventos que é a filha bastarda do rei?
— Não faço a mínima ideia. Mas não vou arrendar o pé de lá enquanto não conseguir falar com ele. — dei de ombros colocando um pão de queijo na boca e queimando a língua. — Vou me juntar ao grupo de orações na frente do palácio, se for preciso.
— Quem é você e o que fez com a minha amiga que estava determinada a não ter nenhum vínculo com a realeza de um país da Europa Ocidental, menor do que o estado de Sergipe? — Alice gargalhou e esticou a mão para pegar um pão de queijo do tabuleiro, mas eu a detive com um tapinha.
— Ela ainda está aqui. — declarei desanimada. — Mas não posso lhe negar solidariedade neste momento. Mesmo sem saber como seria recebido por mim, ele veio aqui, atendendo a um último pedido de minha mãe. É o mínimo que eu posso fazer, Alice.
Ela pegou a minha mão.
— Eu sei disso. E é por isso que me orgulho de ser sua amiga.

30 de setembro de 2016

Isabella - Capítulo 5: Sem comunicação



Quase duas semanas inteiras haviam se passado e eu não consegui entrar em contato com Friedrich para agradecê-lo pelos ingressos para o concerto e pelo violino. Decidi então retomar a minha vida, pois sabia que mais cedo ou mais tarde ele retornaria as minhas ligações. Havia trabalhos da faculdade acumulados e um semestre inteiro de aulas para planejar. As tarefas conseguiam ocupar boa parte dos meus pensamentos, mas bastava uma pausa de cinco minutos para que eles logo se arrastassem para a memória de minha mãe. Meu celular começou a tocar e atendi as pressas achando que era Friedrich.
— Alô? — atendi um tanto empolgada demais, mas logo murchei ao ouvir a voz do outro lado da linha.
— Finalmente consegui falar com você! Eu sei que fui um tremendo babaca com você naquela noite, mas acho que não merecia todo esse gelo. — disse Matheus, falando tão rápido que se eu respirasse, ficaria perdida no meio do caminho.
— Ah. Oi... Matheus... É você?
— E quem mais seria? — percebi certa possessividade em seu tom, mas achei melhor ignorar. Precisava da minha linha desocupada e quanto antes ele desligasse, melhor. Então, começar uma discussão, estava fora de cogitação neste momento.
— É que eu estava esperando outra ligação...
— É por causa desse cara que você tem me evitado todos esses dias?
— Quem falou em cara, Matheus? E outra. Eu não estou te ignorando. É só que... — era difícil colocar aquelas palavras para fora sem que me sentisse destruída por dentro.
— Desembucha, Isabella! — exigiu. Seu tom me fez ferver de raiva. Como eu pude achar que estava apaixonada por esse ogro?
— A minha mãe morreu! E eu estive ocupada, cuidado do velório e das coisas dela. Tá bom para você ou isso seria excesso de informação?
A linha ficou muda por uns bons trinta segundos antes que Matheus abrisse a boca novamente. Mas eu não estava com paciência para suas crises de ciúmes e muito menos para a sua disputa territorialista com um adversário imaginário. Matheus era uma excelente pessoa; até você começar a namorá-lo. Uma pena eu ter percebido isso um pouco tarde demais. Não sou o tipo de pessoa que sente prazer em magoar os sentimentos alheios, mas, no caso de Matheus, eu estava seriamente pensando em abrir uma exceção. Eu não suportaria mais aquela relação. Já seria complicado demais ter que olhar para ele todos os dias na faculdade sem isso.
— Mas que droga, Bella. Eu sabia que ela estava mal, mas... — ele suspirou, soprando forte no fone. — Por que você não me ligou?
— Não é o tipo de notícia que eu goste muito de contar por aí.
— Poderia ter me procurado. Eu teria ficado do seu lado.
— Alice e Ângela me ajudaram. — não precisava mencionar Friedrich naquele momento. Matheus já era encanado demais para que eu desse mais asas à sua imaginação fértil. — Mas obrigada pela oferta. E...
Eu tinha que fazer aquilo agora? Não podia esperar até estarmos na cantina da faculdade mais tarde? Achei melhor adiar e reunir um pouco mais de coragem.
— Eu preciso desligar, Matheus. Tenho que preparar minha aula agora antes que as crianças cheguem. A gente se fala mais tarde?
— Claro, claro. Te vejo na cantina, depois da aula. Beijos.
— Tchau, Matheus.
Desliguei antes que ele pudesse pescar alguma informação subliminar em minha despedida. Pensaria nisso mais tarde, quando não tivesse tantos exercícios para elaborar.
O dia voou como um raio e não havia nenhuma chamada perdida de Friedrich no meu celular. Era estranho, mas aquela falta de notícias dele estava me preocupando. Não era típico dele, ignorar meus telefonemas. Na maioria das vezes esta era uma atitude minha. Pagando na mesma moeda? Acho que não.
Depois do trabalho, segui para a faculdade sem vontade nenhuma. Na verdade, acredito que parte do desânimo devia-se ao fato de ter que encarar Matheus e terminar tudo. Então, me peguei pensando que, se tivesse aceitado o convite de Friedrich naquele dia, teria evitado estar passando por isso agora.
Entreguei meu trabalho de matemática I e fiz um teste surpresa de economia no terceiro tempo, antes do intervalo. Mas o que é que estava acontecendo com o tempo hoje? Parecia que sempre que eu olhava para o relógio, os ponteiros davam três voltas completas em menos de meio minuto. E foi com essa percepção, de que o dia de hoje seria o mais curto e ao mesmo tempo o mais longo, que forcei meus pés a me guiarem pelo campus em direção à cantina no final do prédio quatro. Apesar de saber que Alice estaria lá também, não ajudava muito no fato do que eu estava prestes a fazer. Era como se meus pulmões tivessem perdido a capacidade de filtrar o oxigênio para o meu corpo. Queria conversar com ela antes, saber como fazer aquilo de um jeito que não o magoasse demais, mas seria impossível, já que Matheus esperava por mim na entrada. E, se meus olhos não estivessem me traindo, ele segurava uma caixa, em formato de coração. Meus chocolates favoritos. Deus, dai-me coragem, pois se me der paciência, não sei se serei capaz de fazer isso. Segui em sua direção estampando no rosto o sorriso mais convincente que consegui curvar em meus lábios e antes que eu pudesse me aproximar o suficiente para pegar em sua mão, Matheus me tomou num abraço sufocante.
— Ah, Bella. Eu sinto muito. Você está bem?
As palavras ficaram presas na minha garganta, sufocadas pela minha covardia. Apenas balancei a cabeça, escondendo meu rosto em sua clavícula, enquanto pensava em algo para dizer e acabar de vez com aquilo. Ele me afastou, mantendo uma mão em meu ombro, para me entregar a caixa de chocolates com a outra.
— Espero que eles possam animar um pouco mais a sua vida.
Será que dá pra parar com isso? Eu estou tentando terminar com você!
— Obrigada. — disse apenas.
— Vem, separei uma mesa para a gente lá dentro.
Deixei que Matheus me rebocasse para dentro da cantina, percebendo olhares aqui e ali enquanto passávamos, mas não vi Alice em parte alguma. Todos sabiam o que havia acontecido com a minha mãe. Era a fofoca do momento no campus da UFRJ[1]. Como Matheus não ficou sabendo? Até alguns alunos do curso de medicina, que ficava do outro lado da Cidade Universitária, com quem eu cruzei no início da semana, estavam sabendo. Ele me levou até a mesa em que costumamos nos sentar e puxou a cadeira para mim. Tinha alguma coisa errada. Tá, tudo bem que ser mimada é maravilhoso, mas ele nunca foi um cavalheiro e esse excesso de gentileza não se encaixava com o seu modus operandi. Por que eu estou com a impressão de que ele não só foi um tremendo babaca há algumas semanas, quando fez aquele escândalo desnecessário na fila do cinema, como também andou aprontando?
Diferentemente das outras vezes, Matheus não sentou ao meu lado e, ao invés disso, ocupou a cadeira diante de mim. Contrabalanceando com o seu comportamento quando cheguei, essa distância me pegou de surpresa. Eu não esperava dizer tudo o que pretendia com ele ali, me encarando. Preferia o conforto e o anonimato de uma conversa indireta, da qual eu não precisasse olhar diretamente em seus olhos. Ele esticou o braço e Rita, a balconista, veio até nós.
— Oi, Bella. Que bom ver você aqui de volta. Sinto muito pelo que aconteceu com a sua mãe. — disse ela afagando meu ombro.
Rita é um amor de pessoa. Uma senhora já a beira dos cinquenta e muitos ou sessenta e poucos, mas que não tem nenhum fiozinho branco em sua vasta cabeleira negra, que ela mantém sempre presa num coque em uma rede de nylon. Seus olhos castanhos já viram muitas situações semelhantes a minha ao longo dos trinta anos em que trabalha ali. Seus pêsames, de todos os que eu ouvi no campus hoje, foram os que mais me soaram sinceros.
— É, ela já não estava muito bem mesmo. Pelo menos agora pôde descansar. Difícil agora vai ser seguir em frente sem ela.
— Verdade. Mas pode contar comigo para o que precisar. — concordou ela agora afagando meus cabelos e percebi o olhar frio e severo que lançou a Matheus. — O que vocês vão querer hoje?
— Obrigada, Rita. — minha voz saiu embargada. — Só um café, por favor.
— Para mim o de sempre. — disse Matheus evitando olha-la.
Ela voltou para trás do balcão e falou com alguém através janelinha que dá acesso à cozinha.
— Ela parece aborrecida com você. — falei assim que percebi que Rita estava longe o suficiente para não nos ouvir.
— É mesmo? Nem reparei. — desconversou Matheus, brincando com a caixa de chocolates sobre a mesa, girando-a com o indicador. — Não vai comer?
Não sei se vou merecê-los depois que você ouvir o que tenho para dizer, era o que eu queria dizer, mas optei por:
— Agora não.
Nós dois parecíamos completos estranhos sentados naquela mesa. Havia tanto a dizer, mas nada parecia adequado. Por duas vezes tentei começar o assunto, mas desisti, pois sabia, lá no fundo, que Matheus queria me contar alguma coisa. Deixaria que ele começasse a conversa. Covarde, acusou-me meu inconsciente. Ele parecia tão desconfortável quanto eu e então, para amenizar um pouco o clima, decidi seguir por um caminho menos tortuoso antes da derradeira conversa.
— E aí, o que aconteceu por aqui enquanto estive fora?
Aos meus ouvidos a pergunta soou natural, casual até, mas eu não esperava aquela reação de Matheus. Ele fez uma careta, como se alguém o tivesse chutado por debaixo da mesa e abaixou os olhos para a caixa que ainda girava debaixo do seu indicador, agora um pouco mais rápido que antes, apenas um borrão cor-de-rosa.
— Alguma coisa de errado com a minha pergunta?
Os giros pararam subitamente, mas ele ainda não olhava para mim. E, de cabeça baixa, disse:
— Você não falou com Alice nos últimos dias, suponho.
De fato eu não falava com Alice desde a noite do concerto no Municipal. Assim como eu, ela estava cheia de trabalhos da faculdade acumulados e estava fazendo horas extras no cursinho de inglês no qual dá aulas. Mas eu não entendia o que Alice tinha a ver com a minha pergunta. Continuei em silêncio, esperando que ele me desse uma luz para o enigma, mas ele não o fez e continuou a fitar a caixa.
— Matheus, está tudo bem? — insisti e ele balançou a cabeça afirmando. — Mas então por que é que eu estou com a impressão de que você tem alguma coisa para me contar?
— Porque, como sempre, você está certa. — disse ele, abrindo o lacre da caixa de chocolates. — Tem uma coisa que eu gostaria de conversar com você. Mas não sei como começar.
— Que tal do começo? — sugeri, sem querer colocar pressão, mas morrendo de curiosidade.
Ele sorriu constrangido e pegou um chocolate em formato de estrela da caixa e me entregou. Eu aceitei ainda examinando seu rosto a procura de alguma informação, mas tudo o que vi foi um rapaz confuso e, até mesmo, arrependido.
— Foi uma coisa de momento — começou ele, olhando para todas as direções menos para mim. — Você estava me ignorando naquela semana e eu achei que por causa daquele meu comportamento ridículo no cinema, você não iria querer mais nada comigo.
— Bom, foi ridículo mesmo. Desnecessário até, mas não era motivo para que eu o ignorasse, Matheus. Você sabe a razão de eu não ter entrado em contato antes. — expliquei.
— Eu sei, mas é que eu pensei... — ele deu de ombros e pegou outro chocolate na caixa e o enfiou na boca de uma vez só, mastigando lentamente antes de voltar a falar. — Acontece que eu pensei que você não queria mais saber de mim. Você já tinha dito tantas vezes que não suportava namorados que pegassem no seu pé que eu... Bem... Na minha cabeça já era certo de que você ia me dar um pé na bunda, então...
Quanto mais ele falava, mais sentido estava fazendo. Pela dificuldade em se explicar, só havia um motivo e, se a minha intuição estiver certa, a emenda vai ser melhor que o soneto. E eu que estava preocupada em magoar seus sentimentos.
— Quem é ela? — perguntei na tentativa de facilitar um pouco para o seu lado. Ele me encarou como se uma segunda cabeça tivesse nascido sobre o meu pescoço e eu apertei os lábios para não rir, mas falhei debilmente.
— Isso não é engraçado, Bella. — repreendeu-me ele, genuinamente ofendido. Que irônico não? A ofendida ali deveria ser eu, afinal, era na minha cabeça que um par de cornos brotava.
— É, você está certo. Não é engraçado. — concordei e virei o rosto na direção da TV de plasma na parede ao lado.
Matheus não respondeu a minha pergunta quanto à garota com que havia me traído, mas aquilo já não me importava mais. Na verdade, até o que eu gostaria de dizer a ele perdera totalmente a importância depois que meus olhos bateram na manchete anunciada no rodapé da TV. A CNN anunciava um acidente aéreo nos arredores de Edimburgo, na Escócia. Não dava para ouvir o que o correspondente internacional relatava, mas pude acompanhar a notícia pelas legendas que mudavam rapidamente enquanto ele falava. Ao que parecia, o acidente foi devido a uma pane elétrica na hora do pouso e, até o momento, a lista com os nomes dos passageiros a bordo não fora totalmente divulgada. No entanto, algumas fotos dos passageiros confirmados eram exibidas no canto superior direito da tela. Homens, mulheres, crianças e idosos. Até mesmo uma família inteira foi extinta devido à tragédia. Mas havia também alguns sobreviventes que, ainda recebendo atendimentos médicos no local, se prestavam a dar relatos sobre o incidente. Na medida em que as imagens mudavam, eu perdi completamente a noção de tempo e espaço. As vozes ao meu redor tornaram-se apenas sussurros desconexos e sem importância. As legendas continuavam a mudar freneticamente no rodapé da tela, tornando quase que impossível acompanhar a notícia. Ouvi com gratidão quando alguém pediu para que Rita aumentasse o volume da TV e de repente, todos se calaram para ouvir.
A lista, extraoficial, tinha para mais de cento e cinquenta nomes, mas apenas um em particular prendeu a minha atenção a ponto de eu me colocar de pé num pulo. Se o que o jornalista disse for mesmo verdade, isso explicava por que Friedrich não retornava as minhas ligações há duas semanas.


[1] Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.