30 de setembro de 2016

Isabella - Capítulo 5: Sem comunicação



Quase duas semanas inteiras haviam se passado e eu não consegui entrar em contato com Friedrich para agradecê-lo pelos ingressos para o concerto e pelo violino. Decidi então retomar a minha vida, pois sabia que mais cedo ou mais tarde ele retornaria as minhas ligações. Havia trabalhos da faculdade acumulados e um semestre inteiro de aulas para planejar. As tarefas conseguiam ocupar boa parte dos meus pensamentos, mas bastava uma pausa de cinco minutos para que eles logo se arrastassem para a memória de minha mãe. Meu celular começou a tocar e atendi as pressas achando que era Friedrich.
— Alô? — atendi um tanto empolgada demais, mas logo murchei ao ouvir a voz do outro lado da linha.
— Finalmente consegui falar com você! Eu sei que fui um tremendo babaca com você naquela noite, mas acho que não merecia todo esse gelo. — disse Matheus, falando tão rápido que se eu respirasse, ficaria perdida no meio do caminho.
— Ah. Oi... Matheus... É você?
— E quem mais seria? — percebi certa possessividade em seu tom, mas achei melhor ignorar. Precisava da minha linha desocupada e quanto antes ele desligasse, melhor. Então, começar uma discussão, estava fora de cogitação neste momento.
— É que eu estava esperando outra ligação...
— É por causa desse cara que você tem me evitado todos esses dias?
— Quem falou em cara, Matheus? E outra. Eu não estou te ignorando. É só que... — era difícil colocar aquelas palavras para fora sem que me sentisse destruída por dentro.
— Desembucha, Isabella! — exigiu. Seu tom me fez ferver de raiva. Como eu pude achar que estava apaixonada por esse ogro?
— A minha mãe morreu! E eu estive ocupada, cuidado do velório e das coisas dela. Tá bom para você ou isso seria excesso de informação?
A linha ficou muda por uns bons trinta segundos antes que Matheus abrisse a boca novamente. Mas eu não estava com paciência para suas crises de ciúmes e muito menos para a sua disputa territorialista com um adversário imaginário. Matheus era uma excelente pessoa; até você começar a namorá-lo. Uma pena eu ter percebido isso um pouco tarde demais. Não sou o tipo de pessoa que sente prazer em magoar os sentimentos alheios, mas, no caso de Matheus, eu estava seriamente pensando em abrir uma exceção. Eu não suportaria mais aquela relação. Já seria complicado demais ter que olhar para ele todos os dias na faculdade sem isso.
— Mas que droga, Bella. Eu sabia que ela estava mal, mas... — ele suspirou, soprando forte no fone. — Por que você não me ligou?
— Não é o tipo de notícia que eu goste muito de contar por aí.
— Poderia ter me procurado. Eu teria ficado do seu lado.
— Alice e Ângela me ajudaram. — não precisava mencionar Friedrich naquele momento. Matheus já era encanado demais para que eu desse mais asas à sua imaginação fértil. — Mas obrigada pela oferta. E...
Eu tinha que fazer aquilo agora? Não podia esperar até estarmos na cantina da faculdade mais tarde? Achei melhor adiar e reunir um pouco mais de coragem.
— Eu preciso desligar, Matheus. Tenho que preparar minha aula agora antes que as crianças cheguem. A gente se fala mais tarde?
— Claro, claro. Te vejo na cantina, depois da aula. Beijos.
— Tchau, Matheus.
Desliguei antes que ele pudesse pescar alguma informação subliminar em minha despedida. Pensaria nisso mais tarde, quando não tivesse tantos exercícios para elaborar.
O dia voou como um raio e não havia nenhuma chamada perdida de Friedrich no meu celular. Era estranho, mas aquela falta de notícias dele estava me preocupando. Não era típico dele, ignorar meus telefonemas. Na maioria das vezes esta era uma atitude minha. Pagando na mesma moeda? Acho que não.
Depois do trabalho, segui para a faculdade sem vontade nenhuma. Na verdade, acredito que parte do desânimo devia-se ao fato de ter que encarar Matheus e terminar tudo. Então, me peguei pensando que, se tivesse aceitado o convite de Friedrich naquele dia, teria evitado estar passando por isso agora.
Entreguei meu trabalho de matemática I e fiz um teste surpresa de economia no terceiro tempo, antes do intervalo. Mas o que é que estava acontecendo com o tempo hoje? Parecia que sempre que eu olhava para o relógio, os ponteiros davam três voltas completas em menos de meio minuto. E foi com essa percepção, de que o dia de hoje seria o mais curto e ao mesmo tempo o mais longo, que forcei meus pés a me guiarem pelo campus em direção à cantina no final do prédio quatro. Apesar de saber que Alice estaria lá também, não ajudava muito no fato do que eu estava prestes a fazer. Era como se meus pulmões tivessem perdido a capacidade de filtrar o oxigênio para o meu corpo. Queria conversar com ela antes, saber como fazer aquilo de um jeito que não o magoasse demais, mas seria impossível, já que Matheus esperava por mim na entrada. E, se meus olhos não estivessem me traindo, ele segurava uma caixa, em formato de coração. Meus chocolates favoritos. Deus, dai-me coragem, pois se me der paciência, não sei se serei capaz de fazer isso. Segui em sua direção estampando no rosto o sorriso mais convincente que consegui curvar em meus lábios e antes que eu pudesse me aproximar o suficiente para pegar em sua mão, Matheus me tomou num abraço sufocante.
— Ah, Bella. Eu sinto muito. Você está bem?
As palavras ficaram presas na minha garganta, sufocadas pela minha covardia. Apenas balancei a cabeça, escondendo meu rosto em sua clavícula, enquanto pensava em algo para dizer e acabar de vez com aquilo. Ele me afastou, mantendo uma mão em meu ombro, para me entregar a caixa de chocolates com a outra.
— Espero que eles possam animar um pouco mais a sua vida.
Será que dá pra parar com isso? Eu estou tentando terminar com você!
— Obrigada. — disse apenas.
— Vem, separei uma mesa para a gente lá dentro.
Deixei que Matheus me rebocasse para dentro da cantina, percebendo olhares aqui e ali enquanto passávamos, mas não vi Alice em parte alguma. Todos sabiam o que havia acontecido com a minha mãe. Era a fofoca do momento no campus da UFRJ[1]. Como Matheus não ficou sabendo? Até alguns alunos do curso de medicina, que ficava do outro lado da Cidade Universitária, com quem eu cruzei no início da semana, estavam sabendo. Ele me levou até a mesa em que costumamos nos sentar e puxou a cadeira para mim. Tinha alguma coisa errada. Tá, tudo bem que ser mimada é maravilhoso, mas ele nunca foi um cavalheiro e esse excesso de gentileza não se encaixava com o seu modus operandi. Por que eu estou com a impressão de que ele não só foi um tremendo babaca há algumas semanas, quando fez aquele escândalo desnecessário na fila do cinema, como também andou aprontando?
Diferentemente das outras vezes, Matheus não sentou ao meu lado e, ao invés disso, ocupou a cadeira diante de mim. Contrabalanceando com o seu comportamento quando cheguei, essa distância me pegou de surpresa. Eu não esperava dizer tudo o que pretendia com ele ali, me encarando. Preferia o conforto e o anonimato de uma conversa indireta, da qual eu não precisasse olhar diretamente em seus olhos. Ele esticou o braço e Rita, a balconista, veio até nós.
— Oi, Bella. Que bom ver você aqui de volta. Sinto muito pelo que aconteceu com a sua mãe. — disse ela afagando meu ombro.
Rita é um amor de pessoa. Uma senhora já a beira dos cinquenta e muitos ou sessenta e poucos, mas que não tem nenhum fiozinho branco em sua vasta cabeleira negra, que ela mantém sempre presa num coque em uma rede de nylon. Seus olhos castanhos já viram muitas situações semelhantes a minha ao longo dos trinta anos em que trabalha ali. Seus pêsames, de todos os que eu ouvi no campus hoje, foram os que mais me soaram sinceros.
— É, ela já não estava muito bem mesmo. Pelo menos agora pôde descansar. Difícil agora vai ser seguir em frente sem ela.
— Verdade. Mas pode contar comigo para o que precisar. — concordou ela agora afagando meus cabelos e percebi o olhar frio e severo que lançou a Matheus. — O que vocês vão querer hoje?
— Obrigada, Rita. — minha voz saiu embargada. — Só um café, por favor.
— Para mim o de sempre. — disse Matheus evitando olha-la.
Ela voltou para trás do balcão e falou com alguém através janelinha que dá acesso à cozinha.
— Ela parece aborrecida com você. — falei assim que percebi que Rita estava longe o suficiente para não nos ouvir.
— É mesmo? Nem reparei. — desconversou Matheus, brincando com a caixa de chocolates sobre a mesa, girando-a com o indicador. — Não vai comer?
Não sei se vou merecê-los depois que você ouvir o que tenho para dizer, era o que eu queria dizer, mas optei por:
— Agora não.
Nós dois parecíamos completos estranhos sentados naquela mesa. Havia tanto a dizer, mas nada parecia adequado. Por duas vezes tentei começar o assunto, mas desisti, pois sabia, lá no fundo, que Matheus queria me contar alguma coisa. Deixaria que ele começasse a conversa. Covarde, acusou-me meu inconsciente. Ele parecia tão desconfortável quanto eu e então, para amenizar um pouco o clima, decidi seguir por um caminho menos tortuoso antes da derradeira conversa.
— E aí, o que aconteceu por aqui enquanto estive fora?
Aos meus ouvidos a pergunta soou natural, casual até, mas eu não esperava aquela reação de Matheus. Ele fez uma careta, como se alguém o tivesse chutado por debaixo da mesa e abaixou os olhos para a caixa que ainda girava debaixo do seu indicador, agora um pouco mais rápido que antes, apenas um borrão cor-de-rosa.
— Alguma coisa de errado com a minha pergunta?
Os giros pararam subitamente, mas ele ainda não olhava para mim. E, de cabeça baixa, disse:
— Você não falou com Alice nos últimos dias, suponho.
De fato eu não falava com Alice desde a noite do concerto no Municipal. Assim como eu, ela estava cheia de trabalhos da faculdade acumulados e estava fazendo horas extras no cursinho de inglês no qual dá aulas. Mas eu não entendia o que Alice tinha a ver com a minha pergunta. Continuei em silêncio, esperando que ele me desse uma luz para o enigma, mas ele não o fez e continuou a fitar a caixa.
— Matheus, está tudo bem? — insisti e ele balançou a cabeça afirmando. — Mas então por que é que eu estou com a impressão de que você tem alguma coisa para me contar?
— Porque, como sempre, você está certa. — disse ele, abrindo o lacre da caixa de chocolates. — Tem uma coisa que eu gostaria de conversar com você. Mas não sei como começar.
— Que tal do começo? — sugeri, sem querer colocar pressão, mas morrendo de curiosidade.
Ele sorriu constrangido e pegou um chocolate em formato de estrela da caixa e me entregou. Eu aceitei ainda examinando seu rosto a procura de alguma informação, mas tudo o que vi foi um rapaz confuso e, até mesmo, arrependido.
— Foi uma coisa de momento — começou ele, olhando para todas as direções menos para mim. — Você estava me ignorando naquela semana e eu achei que por causa daquele meu comportamento ridículo no cinema, você não iria querer mais nada comigo.
— Bom, foi ridículo mesmo. Desnecessário até, mas não era motivo para que eu o ignorasse, Matheus. Você sabe a razão de eu não ter entrado em contato antes. — expliquei.
— Eu sei, mas é que eu pensei... — ele deu de ombros e pegou outro chocolate na caixa e o enfiou na boca de uma vez só, mastigando lentamente antes de voltar a falar. — Acontece que eu pensei que você não queria mais saber de mim. Você já tinha dito tantas vezes que não suportava namorados que pegassem no seu pé que eu... Bem... Na minha cabeça já era certo de que você ia me dar um pé na bunda, então...
Quanto mais ele falava, mais sentido estava fazendo. Pela dificuldade em se explicar, só havia um motivo e, se a minha intuição estiver certa, a emenda vai ser melhor que o soneto. E eu que estava preocupada em magoar seus sentimentos.
— Quem é ela? — perguntei na tentativa de facilitar um pouco para o seu lado. Ele me encarou como se uma segunda cabeça tivesse nascido sobre o meu pescoço e eu apertei os lábios para não rir, mas falhei debilmente.
— Isso não é engraçado, Bella. — repreendeu-me ele, genuinamente ofendido. Que irônico não? A ofendida ali deveria ser eu, afinal, era na minha cabeça que um par de cornos brotava.
— É, você está certo. Não é engraçado. — concordei e virei o rosto na direção da TV de plasma na parede ao lado.
Matheus não respondeu a minha pergunta quanto à garota com que havia me traído, mas aquilo já não me importava mais. Na verdade, até o que eu gostaria de dizer a ele perdera totalmente a importância depois que meus olhos bateram na manchete anunciada no rodapé da TV. A CNN anunciava um acidente aéreo nos arredores de Edimburgo, na Escócia. Não dava para ouvir o que o correspondente internacional relatava, mas pude acompanhar a notícia pelas legendas que mudavam rapidamente enquanto ele falava. Ao que parecia, o acidente foi devido a uma pane elétrica na hora do pouso e, até o momento, a lista com os nomes dos passageiros a bordo não fora totalmente divulgada. No entanto, algumas fotos dos passageiros confirmados eram exibidas no canto superior direito da tela. Homens, mulheres, crianças e idosos. Até mesmo uma família inteira foi extinta devido à tragédia. Mas havia também alguns sobreviventes que, ainda recebendo atendimentos médicos no local, se prestavam a dar relatos sobre o incidente. Na medida em que as imagens mudavam, eu perdi completamente a noção de tempo e espaço. As vozes ao meu redor tornaram-se apenas sussurros desconexos e sem importância. As legendas continuavam a mudar freneticamente no rodapé da tela, tornando quase que impossível acompanhar a notícia. Ouvi com gratidão quando alguém pediu para que Rita aumentasse o volume da TV e de repente, todos se calaram para ouvir.
A lista, extraoficial, tinha para mais de cento e cinquenta nomes, mas apenas um em particular prendeu a minha atenção a ponto de eu me colocar de pé num pulo. Se o que o jornalista disse for mesmo verdade, isso explicava por que Friedrich não retornava as minhas ligações há duas semanas.


[1] Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

29 de setembro de 2016

Isabella - Capítulo 4: Presentes e pressão



O aroma do café mesclado ao de pães frescos invadiu meu quarto trazendo deliciosas recordações das tardes em que minha mãe e eu passávamos juntas aos domingos. Era o único dia da semana em que nos permitíamos não fazer absolutamente nada. Minha boca encheu d'água só de lembrar o seu bolo de mandioca com coco e as rabanadas que fazia especialmente para mim. Se eu estivesse em um desenho animado agora, estaria flutuando em direção à sala, levada pelo aroma que perfumava todo o apartamento.

Alice arrumava a mesa, colocando xícaras e pires enquanto Ângela trazia uma cesta de pães quentinhos. Elas não me viram entrar, então aproveitei a ocasião para olhar minhas amigas. Elas eram tudo o que me restava agora. Eram a minha família. Ignorar isso seria uma tremenda idiotice, mas não poderia impor isso a elas. Alice e Ângela já tinham problemas demais para terem que se preocupar com os meus. Mas, mesmo assim, aqui estavam elas, preparando o lanche e me fazendo companhia. Porém, não fosse por um, ou mais um, inconveniente detalhe, esta cena seria digna de um comercial de margarina. A família reunida em volta da mesa, sorrindo e partilhando o alimento. Mas aquilo tinha que estragar tudo.

Era muita forçação de barra.

— Isso já está passando dos limites! — esbravejei entrando na sala. — Vou dar um jeito nisso agora.

— Calma, Bella. — interveio Alice quando peguei o telefone. — Ele não faz por mal.

— Calma? Olhe só para esta sala, Alice. É praticamente impossível andar aqui sem que uma caixa ou outra desabe. Eu já não aguento mais toda essa pressão.

— Sei que é difícil para você entender, Bella. Mas veja o lado dele também. — falou Ângela servindo-me uma xícara de café. — Você ainda não deu nenhuma resposta a ele. Como pai, acredito que ele esteja apenas querendo que você viva com um pouco mais de conforto até que se decida. É um jeito meio torto de querer compensar o tempo que vocês viveram afastados. Mas significa que ele se importa com você.

Respirei fundo, contando até dez. Já estava indo longe demais. A impressão que eu tinha era de que, quanto mais eu demorasse a decidir, mais caixas chegariam e aí eu teria que ser forçada a decidir, já que não haveria espaço ali para todas aquelas coisas e eu.

— Não é tão simples assim.

— Por que não? — rebateu Alice puxando a cadeira para mim. — Você é quem está complicando as coisas, Bella. Não é uma coisa definitiva. Você pode ir e, se não gostar, é só voltar. Veja isso como se fossem férias. Isso. Férias!

Quando digo que eu e esse ser estranho que responde por minha amiga temos uma ligação que nem Freud explica, não é à toa. Eu já havia cogitado esta possibilidade. De encarar esta ida para Ladônia como férias. Que mal haveria em passar alguns meses com a parte da minha família que eu não conhecia? Agora ela ia ficar impossível.

— Bruxa! — acusei-a, mostrando a língua para ela.

Alice quicou na cadeira dando palminhas de felicidade.

— A-há! Eu não disse, mãe? Minha intuição nunca me engana.

— Isso quer dizer então que você vai aceitar o convite do rei e passar uma temporada em Ladônia? — quis saber Ângela, dando um gole em seu chá de ervas que cheirava tão bem quanto os pães quentinhos. — Está mesmo disposta a isso?

— Não. — respondi deixando escapar um riso nervoso. — Mas é isso ou continuar brigando com essas malditas caixas neste apartamento. E por falar nisso — levantei da cadeira e fui em direção ao motivo da minha explosão. —, o que Friedrich mandou desta vez?

Percebi que Alice e sua mãe ficam tensas com a minha atitude. O que é um tanto quanto suspeito, já que elas sempre foram a favor de que Friedrich me mandasse presentes.

— Er... Bella, antes que você abra esta caixa, tem uma coisa que eu gostaria de te contar.

Aquilo me deixou mais tensa ainda. Alice não era dada a encabulamentos e muito menos corar diante de alguma situação.

— Friedrich ligou a três dias perguntando se havia algo que você gostaria muito de ganhar ou comprar. Desculpe, Bella. Mas eu falei sobre as suas aulas de violino então...

— Você fez o quê? Alice! — parei no meio do caminho — Você sabe que eu só levei as aulas de violino à diante por causa da minha mãe. Este era o sonho dela, não meu.

— Eu sei. Eu sei. Mas você toca tão bem que eu achei que não haveria problema...

Fã de música clássica, minha mãe sempre insistiu para que eu aprendesse algum instrumento. Ela era uma excelente pianista e seu sonho era que um dia pudéssemos tocar juntas em um concerto. No início eu bati o pé e me recusei, mas acabei me afeiçoando ao instrumento, porém, desde que eu soube da doença de minha mãe, me dediquei com mais afinco às aulas de violino e ceder ao seu pedido seria o mínimo que poderia fazer por ela naquele momento. Eu via em seus olhos um brilho contagiante, sempre que ela ia assistir as minhas aulas, contrariando as ordens médicas. Admito que levo jeito para a coisa, mas é algo que não queria mais para a minha vida. Era um sonho dela que se realizava através de mim e só. Não havia sentido continuar com a prática se ela não estaria lá para me assistir.



Junto com o presente de Friedrich — que nada mais era que um legítimo Estradivário[1] —, vieram três ingressos para um concerto que aconteceria naquela noite. Alice ficou em êxtase, já que aquela era a oportunidade perfeita para que eu tirasse o vestido que ganhei de Laura da caixa, e também porque a deixei arrumar meu cabelo e fazer a maquiagem. Em resumo, virei uma boneca Barbie em tamanho gigante nas mãos dela. As sete em ponto, a limusine alugada por Friedrich chegou e Seu Salvador nos avisou pelo interfone.

— Desta vez eu me superei. Você está linda, Bella. — gabou-se Alice ao prender um último grampo em meu cabelo e me girando para frente do espelho. — O que achou?

— Uau! — Alice de fato havia feito um milagre. A garota leva jeito para a coisa. — Tem certeza que sou eu ali, refletida naquele espelho?

— Absoluta. Eu já disse que você é uma garota linda, Bella. Só precisa saber explorar isso.

— Andem logo meninas. O carro já chegou. — anunciou Ângela colocando apenas a cabeça dentro do quarto.

— Você ainda não se arrumou? — perguntei ao vê-la com a mesma roupa de hoje à tarde.

— Eu não vou.

— Por quê?

— Problemas no paraíso. — cochichou Alice. — Sabe quando os gatos saem e os ratos fazem a festa? Traduzindo: Carlos dando trabalho mais uma vez.

Aquilo era muito injusto. Com todos os problemas que vinha enfrentando em seu casamento com Carlos, Ângela continuava tratando-me como prioridade. O altruísmo dessa mulher não conhece limites.

— Apressem-se meninas. — disse Ângela cerrando os olhos severamente para a filha, antes de voltar para o corredor.

— Mas o que foi que eu fiz desta vez? — resmungou Alice voltando para o espelho para dar uma última checada no visual. — É proibido dizer a verdade agora?

— Foi um comentário totalmente desnecessário né, Alice. — falei, pegando minha bolsa sobre a cama. — Sei que ele não é perfeito, mas é dele que sua mãe gosta.

Ela revirou os olhos para mim e me entregou os nossos celulares e um vidro de gloss para que eu guardasse na bolsa.
— Não quero falar sobre isso. Será que podemos ir?
 







[1] É o nome dado aos instrumentos de corda, principalmente violinos e violoncelos, construídos por membros da família Stradivari, sendo os instrumentos mais reputados os do luthier Antonio Stradivari (1644-1737).