1 de junho de 2011

Intermitências


Um gotejar contínuo caia sobre seu rosto fazendo-a despertar para uma realidade que desejava jamais voltar. As roupas destruídas e o corpo violentado não eram nada comparados a dor que sentia em seu íntimo. Esperava pela morte que já estava em seus calcanhares e a receberia de braços abertos. Na verdade, isto seria a única coisa que se permitiria aceitar naquele momento. 

O fim.

Seria o fim de uma vida marcada por leviandade e libertinagem. O que mais poderia se esperar de alguém com uma vida como aquela? Ter o corpo possuído por diversos homens, simplesmente pelo prazer de dar prazer, até que não era tão ruim (dependendo de quando e onde). O dinheiro fácil a proporcionava uma vida de glamour e luxo. Padrão este que jamais conseguiria se continuasse atrás do balcão daquela butique chinfrim. 

Enquanto a água da chuva caia, lavando o sangue que agora escorria por seu decote, percebera que o preço que estava prestes a pagar por uma vida sem regras, sem pudor, era alto demais. 

Ainda podia sentir, impregnado em seus braços, mãos, pescoço, seios... cada parte do seu corpo em que ele a tocou, o seu cheiro. A dor aumentava na medida em que a cena voltava as suas lembranças.

Arrumou-se mais demoradamente que o de costume para o encontro. Afinal, não seria um programa como qualquer outro. Até mesmo porque ele não era um cliente como qualquer outro. Aquele sim era o tipo de homem que estava disposto a pagar o “seu preço” — afinal, custava caro manter-se sempre linda e “gostosa”. Ele, por outro lado, fazia todas as suas vontades, realizava todos os seus desejos e caprichos. Comprava-lhe as joias mais caras e as roupas das melhores marcas e grifes. Mandava-lhe flores todas as manhãs e à noite cestas de bombons que encobriam o que de fato era a surpresa: langeries de renda, de todas as cores e modelos.

Mas aquilo precisava terminar.

Simon. Assim ele se chamava. Um homem envolvente e misterioso. Seus olhos negros eram intimidadores e, ao contrário do medo, sentia-se cada vez mais atraída e envolvida por aquele homem, de fala mansa e ponderada. Porém, após um tempo encontrando-se com frequência, percebera mudanças drásticas em suas atitudes e gestos. 

Simon tornara-se possessivo e extremamente ciumento. Não era para ser assim. Sua vida não lhe permitia ter um relacionamento sério com nenhum homem e último que tentou, não durou duas semanas. Tempo necessário para que o sujeito percebesse a boa bisca que apresentava aos seus como sua namorada.

Sentia-se livre e queria continuar assim. Não queria estar presa ou manter qualquer tipo de vínculo com quem quer que fosse. Foi desse tipo de relação que fugira anos atrás. Um casamento mal sucedido, marcado por desconfianças e traições. 

Um vento frio percorreu seu corpo machucado e molhado, intensificando as dores em seus membros. Sem forças para sair de onde estava, fechou os olhos. Ele voltaria, sabia disso em seu inconsciente. E ela esperaria. Esperaria pelo “golpe” de misericórdia que a levaria direto para o fim. Fim este que aguardava com expectativa. 

Lutava com suas memórias, incapaz de acreditar que aquele homem, o homem que a fazia se sentir a mulher mais perfeita de todas. Aquele homem que sabia tocar seu corpo de forma cadenciada como nenhum outro o fizera, fora capaz de roubar não somente seus sonhos, mas também toda a sua vontade de viver. Desejava jamais tê-lo conhecido se previsse um fim assim, doloroso e tortuoso.

E ele voltou.

Com passos suaves e precisos, tocou a grama ao seu lado, aproximando-se lentamente, tornando aquele momento ainda mais desesperador. Porém, seu corpo fraco e moribundo recusava-se a se mexer. Não queria ver o que seu algoz lhe preparava. E então sentiu a violência de seu toque ao virar seu rosto para ele, forçando-a a abrir os olhos. 

O grito de dor preso em sua garganta soou fraco. Uma nota baixa e agourenta ao sentir a ponta da faca que cortava seu rosto. Um movimento lento e angustiante. A dor era dilacerante. O sangue quente e pegajoso escorreu por seu pescoço e ombros, empapando seus cabelos. Desorientada pela dor forçou seus olhos a se abrirem ainda mais, pouco se importando com as gotas que vinham do alto e insistiam em cair sobre eles, cegando-a momentaneamente. 

Um som metálico cortou o ar e o chão ao seu lado tremeu. Uma, duas, três... sete vezes, até que finalmente cessou, quando um objeto pesado caiu a poucos centímetros de seu quadril. Mais uma vez, Simon saiu e a deixou sozinha em meio às árvores e seu pavor crescente. Não havia mais sentido em lutar por sua vida, só queria que tudo aquilo acabasse o quanto antes. Não sabia por quanto tempo mais suportaria aquela tortura.

A chuva intensificou — assim ela pensou — até sentir o cheiro forte de gasolina que invadia suas narinas fazendo sua cabeça girar. Simon apenas a fitava com seus olhos negros, insondáveis. Ele aguardava por alguma coisa e sorriu ao vê-la piscar.

“O que você quer de mim?” — exigiu saber, desesperada.

Alisando seu corpo pela última vez, Simon a empurrou para dentro de um buraco, o que logo a fez concluir o que era o tal objeto pesado. Era uma pá e o que ele cavava naquele momento, nada mais era que a sua cova. 

E a chuva de gasolina continuou.

“Eu lhe avisei. Se não fosse minha, não seria de mais ninguém!”

Uma chama propagou em meio à escuridão úmida e medonha.





3 comentários:

  1. Ai não canso de ler esses texto.
    Nota 10!!
    bjssssss

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  2. Puxa!!!
    Fico feliz em saber que gostou e por você ter sido a 1ª pessoa a fazer um comentário sobre ele... Estava ficando neurótica, achando que ele não era dígno de comentário algum...

    Mais uma vez, obrigada!

    Bjks.

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  3. Maria quando vamos ter coisas novas,to louca pra ver já li todos e o engraçado q eu não me canso nunca.
    bjsssssss

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