19 de agosto de 2011

A Rosa



O tiquetaquear do relógio anunciava que o expediente encerrara há uma hora, mas a pilha de papéis sobre sua mesa parecia não ter diminuído uma polegada sequer. Precisava terminar com os serviços pendentes antes de sair de licença. A cirurgia para a retirada de um nódulo já estava marcada, seria em dois dias, e ela estava tensa. Tinha medo de não resistir, afinal sua mãe havia falecido há dois anos, vitima do mesmo problema. Desde que descobrira o tal nódulo, perdera completamente a vontade de viver. Sabia que não deveria cultivar tal pessimismo, mas no fundo, em seu íntimo, sentia que não teria escapatória. 

O relógio marcava quinze para as nove, agora. 

As luzes do corredor central apagaram e os últimos funcionários foram embora. Sozinha, procurou concentrar-se na tarefa, mas estava eufórica demais. Por duas vezes se pegou devaneando sobre o que a aguardava e teve que recomeçar a tarefa. Exausta, seus olhos não conseguiam mais acompanhar os números na tela do computador. Limpou as lentes dos óculos e nem assim melhorou. Estava tarde e precisava descansar.

Enquanto seu computador desligava, checou todos os setores, apagou as luzes e antes de sair guardou o porta retratos com a foto de sua mãe na bolsa.

A noite estava quente e o céu estrelado exibia uma lua cheia e avermelhada. Amarrou os cabelos a fim de aliviar o calor mormacento daquela noite e caminhou apressada até o ponto de táxi mais próximo. Fazia aquele trajeto todos os dias, mas era a primeira vez que o percorria sozinha. O ponto de táxi era o único lugar iluminado em meio a rua deserta, mas precisaria esperar alguns minutos até que o próximo carro chegasse.

Um perfume diferente, uma mistura floral e amadeirada, preencheu o ar a sua volta. A lâmpada de um poste mais adiante piscou e ela se assustou. Sentada na beira da calçada e segurando uma cesta com as mais variadas flores, estava uma menina. Ela não deveria ter mais que sete ou oito anos. Uma túnica azul turquesa cobria seu pequeno corpo, deixando amostra a ponta de seus dedos e seus pés, descalços, exibiam ferimentos já cicatrizados e alguns recém adquiridos. Seus cabelos louros brilhavam sob o reflexo da lua e seus lábios moviam-se lentamente. 

Preocupada, Hellen se aproximou da menina que pareceu não perceber. Foi engolfada pela sensação de conhecimento, era como se já tivesse visto aquela menina antes. Com o coração aos saltos, chegou mais perto. Enquanto cantava a menina retirou uma rosa da cesta, escolheu a mais bulbosa e perfumada, e a entregou sobressaltando-a com seu movimento rápido.

Tudo naquela menina era muito familiar, desde o tom dos seus cabelos lisos e compridos ao formato de seus dedos. 'Não pode ser!', pensou abismada com tal semelhança. 

“Helena?” — chamou.


Balançando o corpo para frente e para trás, a menina não respondeu. Ela pegou outra flor e começou a despedaçá-la como num bem-me-quer-mau-me-quer. Hellen ajoelhou-se diante da menina e chamou novamente.

“Helena?” 

Alguma coisa brilhava no rosto da criança, até que pequenas manchas escuras surgiram em sua túnica. Ela estava chorando. A intensidade das lágrimas e de seus lamentos aumentou gradativamente e ela logo estava aos prantos.

Chorando copiosamente a menina murmurava pedidos de desculpas e dizia que não faria novamente. Congelada, pega de surpresa pelas palavras e o remorso crescente da criança, ficou sem saber o que fazer. Queria segurar a menina em seus braços e acalentá-la.

A menina levantou o rosto e a encarou.

Foi como se uma descarga elétrica percorresse o seu corpo. A semelhança era patente; seu olhar inocente, o contorno dos lábios, até mesmo as covinhas em suas bochechas quando sorriu. Era ela, não tinha dúvidas. Helena.

Quando criança, Hellen perdeu sua irmã gêmea num acidente de trânsito. As duas seguiam por uma esquina, acompanhadas de sua mãe, quando Helena viu uma rosa branca no chão e correu para pegá-la. Foi tudo tão rápido que não saberia calcular o tempo entre o cantar dos pneus no asfalto e a colisão.

“Não é tão ruim quanto dizem nem tão doloroso como pensam.” — sussurrou a menina ao perceber que a mulher chorava. — “Não tenha medo.” — e tocou seu rosto com a ponta dos dedos infantis e frios. 

A lâmpada no poste piscou mais uma vez e a menina desapareceu. Ainda segurando a rosa, Hellen chamou pela menina, olhando em todas as direções a sua procura. Podia ouvi-la cantar e sentir o cheiro das flores, mas não havia sinal dela em parte alguma. Por onde passava, encontrava pétalas de flores pelo chão e decidiu então seguir a trilha, embrenhando-se por ruas escuras e desertas até que finalmente viu-se diante de um grande portão de ferro. 

As correntes pendiam soltas e enferrujadas. Com um toque o portão cedeu e abriu rangendo. Não fazia a mínima ideia de onde estava e muito menos do porque de a estar seguindo. Qualquer um, em sã consciência, teria corrido de medo. Mas havia algo mais naquela menina. Precisava de respostas. O lugar era um campo aberto e cercado por arvores altas e algumas plantas rasteiras. Por diversas vezes seus pés prenderam-se às raízes expostas, mas manteve-se firme. Arriscou chamá-la mais uma vez e sua voz ecoou em todas as direções. Avançou mais alguns metros até que seus pés tocaram em algo sólido e maciço. Na penumbra não divisou o que pudesse estar em seu caminho, imaginou uma pedra, mas era perfeitamente talhada para tal. Tateando o obstáculo às cegas seu coração quase saltou pela boca quando a luz da lua refletiu. 

Carmo Salles, 1907-1998

Foi como se tudo ao seu redor começasse a entrar em foco. Cruzes, jazigos, vielas que levavam a uma infinidade de túmulos. Quis gritar, mas o pavor a consumia. Fatigada, tentou correr. E foi quando ao longe, no topo de uma colina, vislumbrou a silhueta da menina. O som de sua voz ficava mais nítido a cada passo e o perfume das flores estava em todas as direções. Ela gritou mais uma vez antes de perder totalmente as forças e desabar no chão com um baque surdo.

Uma mão branca e infantil surgiu diante dos seus olhos.

“Não tenha medo.” — disse a menina, tocando seus cabelos. — “Já está quase acabando.”


Atordoada a mulher olhou para a menina e se assustou. O grito de pavor ficou preso na garganta ao encarar seu rosto. Seus lábios vergaram-se num sorriso triste. Ela chorava.

“Venha.” — chamou, tocando agora seu queixo.

“Para onde está me levando, Helena?” — perguntou exausta.

“Está na hora.”

Cambaleando, a mulher ficou de pé e sem entender o porquê, segurou a mão da menina e com ela rumou para o topo da colina. 

***

“Um, dois, três... Afastem-se!” — gritou o enfermeiro, antes de aplicar-lhe mais uma descarga elétrica no peito. Mas já era tarde, o monitor exibia apenas uma linha horizontal.








6 comentários:

  1. nossa foi lindo e profudo d+ até chorei ao terminar de ler ...
    temos que viver mas a nossa vida enquanto a temos ...... bom para refletir sobre a vida que levamos tão corrida.... bejos prima continua assim que vc vai chegar lá ......parabéns .....

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  2. Mary que texto lindo, mais um dos seus.... Como disse Valesca temos que viver mesmo, a vida é curta de mais.... te adoro... sabe que torço por vc, e por seu dom.... bjão

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  3. Caramba!! texto arrebatador! Parabéns
    Bjs

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  4. Profundo, um conteúdo místico que prende o leitor, com desfecho imprevisível.
    Um conceito lúdico do jogo da vida, poético e inebriante, parabéns.

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  5. Nossa q coisa linda,Maria só vc mesmo pra fazer esses textos lindos.
    parabéns é muito sucesso
    bjssssssss

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  6. Nossa to amando,vê se não demora pra colocar o resto kkkkk fiquei curiosa de mais agora quero ler tudo ...BJSSSSSSSS SUCESSSO

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