1 de outubro de 2016

Isabella - Capítulo 6: Dias de tensão



— Calma, Bella. Fala devagar. Eu não estou conseguindo acompanhar. — pediu Alice, do outro lado da linha. — Quando foi que isso aconteceu? Tem certeza mesmo que era ela?
— Mas é claro que tenho, Alice! Quantas Laura Zorcky, você conhece? Não estou louca. Foi o nome dela que o jornalista disse. — afirmei, abrindo a porta do meu apartamento e disparando para o meu quarto.
Peguei a mala de viagem no alto do meu armário e a abri sobre a cama despejando aleatoriamente minhas roupas ali dentro, enquanto desistia de equilibrar o celular entre o ouvido e o ombro, colocando-o no viva voz. Eu não fazia a mínima ideia de como chegaria à Ladônia, mas precisava fazer alguma coisa, já que Friedrich não retornava as minhas ligações. A cabeça dele devia estar a mil e eu não era a melhor pessoa para julgá-lo. Lembro que quando minha mãe morreu, eu não queria falar com ninguém. Queria que o mundo esquecesse a minha existência.
— Mas se fosse mesmo ela, o seu p... Quer dizer, o rei Friedrich, já teria entrado em contato, não?
— Não se ele estiver ocupado com as equipes de buscas. — falei desabando na cama, sentindo um aperto profundo e desconhecido no peito.
Laura e eu mal havíamos trocado meia dúzia de palavras quando nos conhecemos, mas ela me parecia ser uma pessoa boa e não merecia um final trágico como aquele. Assim como minha mãe, era muito injusto ela ser arrancada precocemente de sua família de uma maneira tão violenta.
Pensei em Friedrich e em tudo o que ele deveria estar passando naquele momento. Apesar de ele e minha mãe terem tido uma história no passado, percebi que ele amava a esposa. O sentimento entre eles era mútuo e, de certa forma, bonito de se ver. Uma lágrima tímida rolou em meu rosto, solidarizando-se com o sofrimento de Friedrich. Queria poder segurar em sua mão naquele momento, dar-lhe o apoio que ele precisava. Mas eu não estava lá! Ainda.
— Bella, você está aí? — chamou Alice, sua voz distorcida saindo do viva voz.
— Sim. Estou. — respondi num arremedo de voz.
— Ô, amiga... — Alice ficou em silêncio e percebi que, assim como eu, a notícia foi um baque para ela também. — Chego aí em cinco minutos.
Enquanto aguardava a chegada de Alice, terminei de arrumar a mala. A todo o instante as imagens que vi na TV na cantina da faculdade eclipsavam a minha visão. O avião caído, todo o lado direito da aeronave não era mais que um monte de metal retorcido e disforme, as fotografias das vítimas, os depoimentos dos sobreviventes... Um arrepio percorreu meu corpo. Liguei a TV do meu quarto na esperança de que o Jornal Nacional desse mais algumas informações sobre o acidente. Antes que as notícias do Brasil e do mundo fossem dadas, ainda precisei aguentar alguns minutos de novela das sete. Impaciente, fui até a cozinha preparar um café na cafeteira que Friedrich que me deu — o único presente dele que eu havia desembalado. Confesso que não fosse o meu vício pela cafeína, a máquina continuaria guardadinha no mesmo lugar.
Muitos comerciais depois, finalmente ouvi a familiar chamada do jornal e voltei para o quarto correndo. Já de cara, Willian Bonner, âncora do jornal, começou com a notícia sobre o acidente em Edimburgo e um link para o correspondente local foi aberto. O repórter começou com um resumo detalhado do acidente e que o laudo da caixa preta só ficará pronto no final do mês, mas que os técnicos não descartavam a possibilidade de que uma falha elétrica tenha sido a causa do acidente. Em meio às informações, finalmente ouvi o que mais me incomodava desde o momento em que soube do acontecido.
— As famílias das vítimas continuam aguardando pela divulgação oficial da lista de passageiros. — disse o jornalista. — A lista só saiu hoje, no final da tarde, e será anunciada agora a noite, através de um porta-voz da companhia, em uma coletiva marcada para as duas horas da manhã, horário local. Estima-se que, a bordo, havia cento e cinquenta passageiros. Entre eles: dois pilotos e cinco membros da tripulação. Até o momento, apenas vinte vítimas fatais foram confirmadas, cento e quinze feridos e quinze ainda desaparecidos. — enquanto o jornalista narrava, uma imagem aérea, acredito eu que, feita no inicio da tarde, era passada. — As equipes de buscas ainda estão circulando a área, mas a mata fechada atrapalha na localização das vítimas sobreviventes que se refugiaram na floresta.
Mais uma vez os nomes e as idades das vítimas fatais foram anunciados e foi com alívio que constatei que Laura não estava naquela relação. Mas ela tampouco estava na listagem dos sobreviventes feridos. Minha última esperança fiava-se no fato de que, talvez, o grupo que procurou abrigo na mata estivesse bem. Fisicamente, pelo menos. Como que para confirmar as minhas esperanças, o repórter continuou:
— Acredita-se também que a rainha Laura Zorcky seja uma das sobreviventes. O rei Friedrich Zorcky veio pessoalmente à Edimburgo e está participando ativamente junto com as equipes de busca. O povo de Ladônia está fazendo uma vigília diante do Palácio di Plázio, em oração pela vida da rainha.
 Naquele momento, Alice entrou no meu quarto. O rosto tão pálido quanto às velas do castiçal da mesa de jantar. Com os olhos cheios d'água, ela venceu a distância entre nós e me abraçou.
— Sinto muito, amiga.
Eu não sabia o que dizer. Laura não era nada minha, exceto a esposa de meu suposto pai e rainha de uma nação que a idolatrava como uma santa. Mas ainda assim, senti muita afeição por aquela mulher, que lembrava e muito a minha mãe, quando nos conhecemos. Alice afrouxou o abraço e afastou-se de mim. Seus olhos estavam úmidos.
— Ela está bem. — eu disse. Mas parecia que queria convencer a mim mesma disso.
— Eu sei.
— Então chega dessa choradeira e me ajude a levar esta mala para a sala. Vou deixar as chaves do apartamento com vocês. Amanhã vou ao consulado de Ladônia dar entrada no meu visto e... — calei minha tagarelice quando percebi que Alice não havia saído do lugar e eu estava falando sozinha e apenas as paredes do corredor pareciam me ouvir. Olhei para ela que encarava o chão, incapaz de olhar para mim. — Alice, o que houve?
Sabe quando você tem a impressão de estar vivendo um déjà vu? Não sei bem, mas tinha a sensação de ter visto aquela mesma reação não fazia muito tempo. Mas continuei aguardando por uma resposta dela, que parecia estar mais interessada nas unhas dos pés, pintadas num vermelho sangue, do que em me responder.
— Eu nem sei por onde começar, Bella. — o miado de um gato teria sido mais alto que o seu tom. — Para ser sincera, não queria ser eu a portadora desta notícia, mas sou sua amiga e me chateia ver as pessoas te sacaneando.
Rebobinando os acontecimentos do meu dia até aquele momento, sou transportada até a cantina, mais precisamente a uma mesa do fundo, onde Matheus e eu nos encontramos no final da tarde. Foi uma conversa semelhante, mas que não chegou a ser concluída devido à notícia que vi na TV e precisei sair de lá às pressas. Matheus não chegou a me dizer quem era a tal garota e alguma coisa me dizia que Alice sabia quem era. Daí, o que Matheus disse, começou a fazer sentido: Você não falou com Alice nos últimos dias, suponho.
— Alice, se tem alguma a ver com o Matheus, pode falar. Nós conversamos hoje.
— Eu não acredito que aquele safado teve a coragem de fazer isso com você. — falou irritada. Percebi que seus punhos se fecharam ao lado do corpo. — Eu disse a ele que contaria a você se ele não tomasse uma atitude. Mesmo sabendo do que aconteceu com a sua mãe, aquele cretino teve a coragem de sair com a Sheila.
Foi como levar um tapa sem mão ouvir o que Alice acabava de me contar. Durante o nosso encontro e até mesmo ao telefone, Matheus deu a entender que não sabia do que havia acontecido com a minha mãe. E agora fico sabendo que ele sempre soube! Então estava explicado a caixa de chocolates e o olhar mordaz de Rita hoje.
— Ele sabia?
— É claro que sabia, Bella. Todos os nossos amigos e alguns conhecidos também. Sua mãe era muito querida por lá, você sabe. Alguns até ficaram mais tristes por não poderem mais ir a uma festa organizada por ela do que por sua morte propriamente dita.
— E eu achando que estava sendo cruel por terminar com ele. Quanta estupidez!
— Você não sabe como fico feliz em saber que vocês terminaram. — disse ela, incapaz de esconder sua satisfação.
Não era segredo para ninguém que Alice não via meu relacionamento com Matheus com bons olhos. Eles já haviam namorado há algum tempo e, mesmo com todas as recomendações e contra e indicações de Alice, resolvi investir. Resultado: quebrei a cara bonito. Ela me lançou um olhar do tipo eu te avisei e colocou as mãos na cintura.
— Tá bom. Você estava certa. Satisfeita?
— Não. Mas você bem que poderia me dar ouvidos de vez em quando. — ela balançou a cabeça e pegou a minha mão. — Agora me conte, que história de acidente é essa.

Alice ficou boquiaberta com o que lhe contei e ela mesma estava chocada por não ter visto os noticiários nos últimos dias. Nem mesmo Ângela havia comentado (e olha que ela é a maior noveleira que eu conheço!). Assim como eu, Alice estava atolada de trabalhos da faculdade e estava se desdobrando para cobrir uma licença no trabalho. Uma das professoras precisou fazer uma cirurgia de última hora, pegando todos de surpresa, inclusive Alice, ao anunciarem que ela assumiria as suas turmas e as da colega afastada até que ela retornasse.
Contei a ela também dos meus planos de ir para Ladônia o quanto antes, tão logo meu visto fosse liberado e que por esta razão, não queria perder tempo com atividades demoradas como fazer as malas.
— Eu preferia que você estivesse indo para lá num outro contexto. — confessou Alice, servindo o café em duas xícaras enquanto eu tirava um tabuleiro de pães de queijo do forno. — Chegar lá assim, no meio dessa confusão não vai ser nada legal, ainda mais com o rei longe de casa. O que as pessoas vão pensar quando a vir chegando com uma mala e bradando aos quatro ventos que é a filha bastarda do rei?
— Não faço a mínima ideia. Mas não vou arrendar o pé de lá enquanto não conseguir falar com ele. — dei de ombros colocando um pão de queijo na boca e queimando a língua. — Vou me juntar ao grupo de orações na frente do palácio, se for preciso.
— Quem é você e o que fez com a minha amiga que estava determinada a não ter nenhum vínculo com a realeza de um país da Europa Ocidental, menor do que o estado de Sergipe? — Alice gargalhou e esticou a mão para pegar um pão de queijo do tabuleiro, mas eu a detive com um tapinha.
— Ela ainda está aqui. — declarei desanimada. — Mas não posso lhe negar solidariedade neste momento. Mesmo sem saber como seria recebido por mim, ele veio aqui, atendendo a um último pedido de minha mãe. É o mínimo que eu posso fazer, Alice.
Ela pegou a minha mão.
— Eu sei disso. E é por isso que me orgulho de ser sua amiga.

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