—
Calma, Bella. Fala devagar. Eu não estou conseguindo acompanhar. — pediu Alice,
do outro lado da linha. — Quando foi que isso aconteceu? Tem certeza mesmo que
era ela?
— Mas é claro que tenho, Alice! Quantas Laura Zorcky, você conhece? Não
estou louca. Foi o nome dela que o jornalista disse. — afirmei, abrindo a porta
do meu apartamento e disparando para o meu quarto.
Peguei a mala de viagem no alto do meu armário e a abri sobre a cama
despejando aleatoriamente minhas roupas ali dentro, enquanto desistia de
equilibrar o celular entre o ouvido e o ombro, colocando-o no viva voz. Eu não
fazia a mínima ideia de como chegaria à Ladônia, mas precisava fazer alguma
coisa, já que Friedrich não retornava as minhas ligações. A cabeça dele devia
estar a mil e eu não era a melhor pessoa para julgá-lo. Lembro que quando minha
mãe morreu, eu não queria falar com ninguém. Queria que o mundo esquecesse a
minha existência.
— Mas se fosse mesmo ela, o seu p... Quer dizer, o rei Friedrich, já
teria entrado em contato, não?
— Não se ele estiver ocupado com as equipes de buscas. — falei desabando
na cama, sentindo um aperto profundo e desconhecido no peito.
Laura e eu mal havíamos trocado meia dúzia de palavras quando nos
conhecemos, mas ela me parecia ser uma pessoa boa e não merecia um final
trágico como aquele. Assim como minha mãe, era muito injusto ela ser arrancada
precocemente de sua família de uma maneira tão violenta.
Pensei em Friedrich e em tudo o que ele deveria estar passando naquele
momento. Apesar de ele e minha mãe terem tido uma história no passado, percebi
que ele amava a esposa. O sentimento entre eles era mútuo e, de certa forma,
bonito de se ver. Uma lágrima tímida rolou em meu rosto, solidarizando-se com o
sofrimento de Friedrich. Queria poder segurar em sua mão naquele momento,
dar-lhe o apoio que ele precisava. Mas eu não estava lá! Ainda.
— Bella, você está aí? — chamou Alice, sua voz distorcida saindo do viva
voz.
— Sim. Estou. — respondi num arremedo de voz.
— Ô, amiga... — Alice ficou em silêncio e percebi que, assim como eu, a
notícia foi um baque para ela também. — Chego aí em cinco minutos.
Enquanto aguardava a chegada de Alice, terminei de arrumar a mala. A
todo o instante as imagens que vi na TV na cantina da faculdade eclipsavam a minha visão. O
avião caído, todo o lado direito da aeronave não era mais que um monte de metal
retorcido e disforme, as fotografias das vítimas, os depoimentos dos
sobreviventes... Um arrepio percorreu meu corpo. Liguei a TV do meu quarto na esperança de que o
Jornal Nacional desse mais algumas informações sobre o acidente. Antes que as
notícias do Brasil e do mundo fossem dadas, ainda precisei aguentar alguns
minutos de novela das sete. Impaciente, fui até a cozinha preparar um café na
cafeteira que Friedrich que me deu — o único presente dele que eu havia
desembalado. Confesso que não fosse o meu vício pela cafeína, a máquina
continuaria guardadinha no mesmo lugar.
Muitos comerciais depois, finalmente ouvi a familiar chamada do jornal e
voltei para o quarto correndo. Já de cara, Willian Bonner, âncora do jornal,
começou com a notícia sobre o acidente em Edimburgo e um link para o
correspondente local foi aberto. O repórter começou com um resumo detalhado do
acidente e que o laudo da caixa preta só ficará pronto no final do mês, mas que
os técnicos não descartavam a possibilidade de que uma falha elétrica tenha
sido a causa do acidente. Em meio às informações, finalmente ouvi o que mais me
incomodava desde o momento em que soube do acontecido.
— As famílias das vítimas continuam aguardando pela divulgação oficial
da lista de passageiros. — disse o jornalista. — A lista só saiu hoje, no final
da tarde, e será anunciada agora a noite, através de um porta-voz da companhia,
em uma coletiva marcada para as duas horas da manhã, horário local. Estima-se
que, a bordo, havia cento e cinquenta passageiros. Entre eles: dois pilotos e
cinco membros da tripulação. Até o momento, apenas vinte vítimas fatais foram
confirmadas, cento e quinze feridos e quinze ainda desaparecidos. — enquanto o
jornalista narrava, uma imagem aérea, acredito eu que, feita no inicio da
tarde, era passada. — As equipes de buscas ainda estão circulando a área, mas a
mata fechada atrapalha na localização das vítimas sobreviventes que se
refugiaram na floresta.
Mais uma vez os nomes e as idades das vítimas fatais foram anunciados e
foi com alívio que constatei que Laura não estava naquela relação. Mas ela
tampouco estava na listagem dos sobreviventes feridos. Minha última esperança
fiava-se no fato de que, talvez, o grupo que procurou abrigo na mata estivesse
bem. Fisicamente, pelo menos. Como que para confirmar as minhas esperanças, o
repórter continuou:
— Acredita-se também que a rainha Laura Zorcky seja uma das
sobreviventes. O rei Friedrich Zorcky veio pessoalmente à Edimburgo e está
participando ativamente junto com as equipes de busca. O povo de Ladônia está
fazendo uma vigília diante do Palácio di Plázio, em oração pela vida da rainha.
Naquele momento, Alice entrou no
meu quarto. O rosto tão pálido quanto às velas do castiçal da mesa de jantar.
Com os olhos cheios d'água, ela venceu a distância entre nós e me abraçou.
— Sinto muito, amiga.
Eu não sabia o que dizer. Laura não era nada minha, exceto a esposa de
meu suposto pai e rainha de uma nação que a idolatrava como uma santa. Mas
ainda assim, senti muita afeição por aquela mulher, que lembrava e muito a
minha mãe, quando nos conhecemos. Alice afrouxou o abraço e afastou-se de mim.
Seus olhos estavam úmidos.
— Ela está bem. — eu disse. Mas parecia que queria convencer a mim mesma
disso.
— Eu sei.
— Então chega dessa choradeira e me ajude a levar esta mala para a sala.
Vou deixar as chaves do apartamento com vocês. Amanhã vou ao consulado de
Ladônia dar entrada no meu visto e... — calei minha tagarelice quando percebi
que Alice não havia saído do lugar e eu estava falando sozinha e apenas as
paredes do corredor pareciam me ouvir. Olhei para ela que encarava o chão,
incapaz de olhar para mim. — Alice, o que houve?
Sabe quando você tem a impressão de estar vivendo um déjà vu? Não sei
bem, mas tinha a sensação de ter visto aquela mesma reação não fazia muito
tempo. Mas continuei aguardando por uma resposta dela, que parecia estar mais
interessada nas unhas dos pés, pintadas num vermelho sangue, do que em me
responder.
— Eu nem sei por onde começar, Bella. — o miado de um gato teria sido
mais alto que o seu tom. — Para ser sincera, não queria ser eu a portadora
desta notícia, mas sou sua amiga e me chateia ver as pessoas te sacaneando.
Rebobinando os acontecimentos do meu dia até aquele momento, sou
transportada até a cantina, mais precisamente a uma mesa do fundo, onde Matheus
e eu nos encontramos no final da tarde. Foi uma conversa semelhante, mas que
não chegou a ser concluída devido à notícia que vi na TV e precisei sair de lá às pressas. Matheus
não chegou a me dizer quem era a tal garota e alguma coisa me dizia que Alice
sabia quem era. Daí, o que Matheus disse, começou a fazer sentido: Você não
falou com Alice nos últimos dias, suponho.
— Alice, se tem alguma a ver com o Matheus, pode falar. Nós conversamos
hoje.
— Eu não acredito que aquele safado teve a coragem de fazer isso com
você. — falou irritada. Percebi que seus punhos se fecharam ao lado do corpo. —
Eu disse a ele que contaria a você se ele não tomasse uma atitude. Mesmo
sabendo do que aconteceu com a sua mãe, aquele cretino teve a coragem de sair
com a Sheila.
Foi como levar um tapa sem mão ouvir o que Alice acabava de me contar.
Durante o nosso encontro e até mesmo ao telefone, Matheus deu a entender que
não sabia do que havia acontecido com a minha mãe. E agora fico sabendo que ele
sempre soube! Então estava explicado a caixa de chocolates e o olhar mordaz de
Rita hoje.
— Ele sabia?
— É claro que sabia, Bella. Todos os nossos amigos e alguns conhecidos
também. Sua mãe era muito querida por lá, você sabe. Alguns até ficaram mais
tristes por não poderem mais ir a uma festa organizada por ela do que por sua
morte propriamente dita.
— E eu achando que estava sendo cruel por terminar com ele. Quanta
estupidez!
— Você não sabe como fico feliz em saber que vocês terminaram. — disse
ela, incapaz de esconder sua satisfação.
Não era segredo para ninguém que Alice não via meu relacionamento com
Matheus com bons olhos. Eles já haviam namorado há algum tempo e, mesmo com
todas as recomendações e contra e indicações de Alice, resolvi investir.
Resultado: quebrei a cara bonito. Ela me lançou um olhar do tipo eu te
avisei e colocou as mãos na cintura.
— Tá bom. Você estava certa. Satisfeita?
— Não. Mas você bem que poderia me dar ouvidos de vez em quando. — ela
balançou a cabeça e pegou a minha mão. — Agora me conte, que história de
acidente é essa.
Alice
ficou boquiaberta com o que lhe contei e ela mesma estava chocada por não ter
visto os noticiários nos últimos dias. Nem mesmo Ângela havia comentado (e olha
que ela é a maior noveleira que eu conheço!). Assim como eu, Alice estava
atolada de trabalhos da faculdade e estava se desdobrando para cobrir uma
licença no trabalho. Uma das professoras precisou fazer uma cirurgia de última
hora, pegando todos de surpresa, inclusive Alice, ao anunciarem que ela
assumiria as suas turmas e as da colega afastada até que ela retornasse.
Contei a ela também dos meus planos de ir para Ladônia o quanto antes,
tão logo meu visto fosse liberado e que por esta razão, não queria perder tempo
com atividades demoradas como fazer as malas.
— Eu preferia que você estivesse indo para lá num outro contexto. —
confessou Alice, servindo o café em duas xícaras enquanto eu tirava um
tabuleiro de pães de queijo do forno. — Chegar lá assim, no meio dessa confusão
não vai ser nada legal, ainda mais com o rei longe de casa. O que as pessoas
vão pensar quando a vir chegando com uma mala e bradando aos quatro ventos que
é a filha bastarda do rei?
— Não faço a mínima ideia. Mas não vou arrendar o pé de lá enquanto não
conseguir falar com ele. — dei de ombros colocando um pão de queijo na boca e
queimando a língua. — Vou me juntar ao grupo de orações na frente do palácio,
se for preciso.
— Quem é você e o que fez com a minha amiga que estava determinada a não
ter nenhum vínculo com a realeza de um país da Europa Ocidental, menor do que o
estado de Sergipe? — Alice gargalhou e esticou a mão para pegar um pão de
queijo do tabuleiro, mas eu a detive com um tapinha.
— Ela ainda está aqui. — declarei desanimada. — Mas não posso lhe negar
solidariedade neste momento. Mesmo sem saber como seria recebido por mim, ele
veio aqui, atendendo a um último pedido de minha mãe. É o mínimo que eu posso
fazer, Alice.
Ela pegou a minha mão.
— Eu sei disso. E é por isso que me orgulho de ser sua amiga.
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