Quase
duas semanas inteiras haviam se passado e eu não consegui entrar em contato com
Friedrich para agradecê-lo pelos ingressos para o concerto e pelo violino.
Decidi então retomar a minha vida, pois sabia que mais cedo ou mais tarde ele
retornaria as minhas ligações. Havia trabalhos da faculdade acumulados e um
semestre inteiro de aulas para planejar. As tarefas conseguiam ocupar boa parte
dos meus pensamentos, mas bastava uma pausa de cinco minutos para que eles logo
se arrastassem para a memória de minha mãe. Meu celular começou a tocar e atendi
as pressas achando que era Friedrich.
— Alô? — atendi um tanto empolgada demais, mas logo murchei ao ouvir a
voz do outro lado da linha.
— Finalmente consegui falar com você! Eu sei que fui um tremendo babaca
com você naquela noite, mas acho que não merecia todo esse gelo. — disse
Matheus, falando tão rápido que se eu respirasse, ficaria perdida no meio do
caminho.
— Ah. Oi... Matheus... É você?
— E quem mais seria? — percebi certa possessividade em seu tom, mas achei
melhor ignorar. Precisava da minha linha desocupada e quanto antes ele
desligasse, melhor. Então, começar uma discussão, estava fora de cogitação
neste momento.
— É que eu estava esperando outra ligação...
— É por causa desse cara que você tem me evitado todos esses dias?
— Quem falou em cara, Matheus? E outra. Eu não estou te ignorando. É só
que... — era difícil colocar aquelas palavras para fora sem que me sentisse
destruída por dentro.
— Desembucha, Isabella! — exigiu. Seu tom me fez ferver de raiva. Como eu pude achar que estava apaixonada por
esse ogro?
— A minha mãe morreu! E eu estive ocupada, cuidado do velório e das
coisas dela. Tá bom para você ou isso seria excesso de informação?
A linha ficou muda por uns bons trinta segundos antes que Matheus
abrisse a boca novamente. Mas eu não estava com paciência para suas crises de
ciúmes e muito menos para a sua disputa territorialista com um adversário
imaginário. Matheus era uma excelente pessoa; até você começar a namorá-lo. Uma
pena eu ter percebido isso um pouco tarde demais. Não sou o tipo de pessoa que
sente prazer em magoar os sentimentos alheios, mas, no caso de Matheus, eu estava
seriamente pensando em abrir uma exceção. Eu não suportaria mais aquela
relação. Já seria complicado demais ter que olhar para ele todos os dias na
faculdade sem isso.
— Mas que droga, Bella. Eu sabia que ela estava mal, mas... — ele suspirou,
soprando forte no fone. — Por que você não me ligou?
— Não é o tipo de notícia que eu goste muito de contar por aí.
— Poderia ter me procurado. Eu teria ficado do seu lado.
— Alice e Ângela me ajudaram. — não precisava mencionar Friedrich
naquele momento. Matheus já era encanado demais para que eu desse mais asas à
sua imaginação fértil. — Mas obrigada pela oferta. E...
Eu tinha que fazer aquilo agora? Não podia esperar até estarmos na
cantina da faculdade mais tarde? Achei melhor adiar e reunir um pouco mais de
coragem.
— Eu preciso desligar, Matheus. Tenho que preparar minha aula agora
antes que as crianças cheguem. A gente se fala mais tarde?
— Claro, claro. Te vejo na cantina, depois da aula. Beijos.
— Tchau, Matheus.
Desliguei antes que ele pudesse pescar alguma informação subliminar em
minha despedida. Pensaria nisso mais tarde, quando não tivesse tantos exercícios
para elaborar.
O dia voou como um raio e não havia nenhuma chamada perdida de Friedrich
no meu celular. Era estranho, mas aquela falta de notícias dele estava me
preocupando. Não era típico dele, ignorar meus telefonemas. Na maioria das
vezes esta era uma atitude minha. Pagando na mesma moeda? Acho que não.
Depois do trabalho, segui para a faculdade sem vontade nenhuma. Na
verdade, acredito que parte do desânimo devia-se ao fato de ter que encarar Matheus e
terminar tudo. Então, me peguei pensando que, se tivesse aceitado o convite de
Friedrich naquele dia, teria evitado estar passando por isso agora.
Entreguei meu trabalho de matemática I e fiz um teste surpresa de
economia no terceiro tempo, antes do intervalo. Mas o que é que estava
acontecendo com o tempo hoje? Parecia que sempre que eu olhava para o relógio,
os ponteiros davam três voltas completas em menos de meio minuto. E foi com
essa percepção, de que o dia de hoje seria o mais curto e ao mesmo tempo o mais
longo, que forcei meus pés a me guiarem pelo campus em direção à cantina no
final do prédio quatro. Apesar de saber que Alice estaria lá também, não
ajudava muito no fato do que eu estava prestes a fazer. Era como se meus
pulmões tivessem perdido a capacidade de filtrar o oxigênio para o meu corpo.
Queria conversar com ela antes, saber como fazer aquilo de um jeito que não o
magoasse demais, mas seria impossível, já que Matheus esperava por mim na
entrada. E, se meus olhos não estivessem me traindo, ele segurava uma caixa, em
formato de coração. Meus chocolates favoritos. Deus, dai-me coragem, pois se me der paciência, não sei se serei capaz
de fazer isso. Segui em sua direção estampando no rosto o sorriso mais
convincente que consegui curvar em meus lábios e antes que eu pudesse me
aproximar o suficiente para pegar em sua mão, Matheus me tomou num abraço
sufocante.
— Ah, Bella. Eu sinto muito. Você está bem?
As palavras ficaram presas na minha garganta, sufocadas pela minha
covardia. Apenas balancei a cabeça, escondendo meu rosto em sua clavícula,
enquanto pensava em algo para dizer e acabar de vez com aquilo. Ele me afastou,
mantendo uma mão em meu ombro, para me entregar a caixa de chocolates com a
outra.
— Espero que eles possam animar um pouco mais a sua vida.
Será que dá pra parar com isso? Eu estou
tentando terminar com você!
— Obrigada. — disse apenas.
— Vem, separei uma mesa para a gente lá dentro.
Deixei que Matheus me rebocasse para dentro da cantina, percebendo
olhares aqui e ali enquanto passávamos, mas não vi Alice em parte alguma. Todos
sabiam o que havia acontecido com a minha mãe. Era a fofoca do momento no
campus da UFRJ[1].
Como Matheus não ficou sabendo? Até alguns alunos do curso de medicina, que
ficava do outro lado da Cidade Universitária, com quem eu cruzei no início da
semana, estavam sabendo. Ele me levou até a mesa em que costumamos nos sentar e
puxou a cadeira para mim. Tinha alguma coisa errada. Tá, tudo bem que ser
mimada é maravilhoso, mas ele nunca foi um cavalheiro e esse excesso de
gentileza não se encaixava com o seu modus
operandi. Por que eu estou com a impressão de que ele não só foi um
tremendo babaca há algumas semanas, quando fez aquele escândalo desnecessário
na fila do cinema, como também andou aprontando?
Diferentemente das outras vezes, Matheus não sentou ao meu lado e, ao
invés disso, ocupou a cadeira diante de mim. Contrabalanceando com o seu
comportamento quando cheguei, essa distância me pegou de surpresa. Eu não
esperava dizer tudo o que pretendia com ele ali, me encarando. Preferia o
conforto e o anonimato de uma conversa indireta, da qual eu não precisasse
olhar diretamente em seus olhos. Ele esticou o braço e Rita, a balconista, veio
até nós.
— Oi, Bella. Que bom ver você aqui de volta. Sinto muito pelo que
aconteceu com a sua mãe. — disse ela afagando meu ombro.
Rita é um amor de pessoa. Uma senhora já a beira dos cinquenta e muitos
ou sessenta e poucos, mas que não tem nenhum fiozinho branco em sua vasta
cabeleira negra, que ela mantém sempre presa num coque em uma rede de nylon. Seus
olhos castanhos já viram muitas situações semelhantes a minha ao longo dos
trinta anos em que trabalha ali. Seus pêsames, de todos os que eu ouvi no
campus hoje, foram os que mais me soaram sinceros.
— É, ela já não estava muito bem mesmo. Pelo menos agora pôde descansar.
Difícil agora vai ser seguir em frente sem ela.
— Verdade. Mas pode contar comigo para o que precisar. — concordou ela
agora afagando meus cabelos e percebi o olhar frio e severo que lançou a
Matheus. — O que vocês vão querer hoje?
— Obrigada, Rita. — minha voz saiu embargada. — Só um café, por favor.
— Para mim o de sempre. — disse Matheus evitando olha-la.
Ela voltou para trás do balcão e falou com alguém através janelinha que
dá acesso à cozinha.
— Ela parece aborrecida com você. — falei assim que percebi que Rita estava
longe o suficiente para não nos ouvir.
— É mesmo? Nem reparei. — desconversou Matheus, brincando com a caixa de
chocolates sobre a mesa, girando-a com o indicador. — Não vai comer?
Não sei se vou merecê-los depois que você ouvir o que tenho para dizer,
era o que eu queria dizer, mas optei por:
— Agora não.
Nós dois parecíamos completos estranhos sentados naquela mesa. Havia
tanto a dizer, mas nada parecia adequado. Por duas vezes tentei começar o
assunto, mas desisti, pois sabia, lá no fundo, que Matheus queria me contar
alguma coisa. Deixaria que ele começasse a conversa. Covarde, acusou-me meu inconsciente. Ele parecia tão desconfortável
quanto eu e então, para amenizar um pouco o clima, decidi seguir por um caminho
menos tortuoso antes da derradeira conversa.
— E aí, o que aconteceu por aqui enquanto estive fora?
Aos meus ouvidos a pergunta soou natural, casual até, mas eu não
esperava aquela reação de Matheus. Ele fez uma careta, como se alguém o tivesse
chutado por debaixo da mesa e abaixou os olhos para a caixa que ainda girava
debaixo do seu indicador, agora um pouco mais rápido que antes, apenas um
borrão cor-de-rosa.
— Alguma coisa de errado com a minha pergunta?
Os giros pararam subitamente, mas ele ainda não olhava para mim. E, de
cabeça baixa, disse:
— Você não falou com Alice nos últimos dias, suponho.
De fato eu não falava com Alice desde a noite do concerto no Municipal.
Assim como eu, ela estava cheia de trabalhos da faculdade acumulados e estava
fazendo horas extras no cursinho de inglês no qual dá aulas. Mas eu não
entendia o que Alice tinha a ver com a minha pergunta. Continuei em silêncio,
esperando que ele me desse uma luz para o enigma, mas ele não o fez e continuou
a fitar a caixa.
— Matheus, está tudo bem? — insisti e ele balançou a cabeça afirmando. —
Mas então por que é que eu estou com a impressão de que você tem alguma coisa
para me contar?
— Porque, como sempre, você está certa. — disse ele, abrindo o lacre da
caixa de chocolates. — Tem uma coisa que eu gostaria de conversar com você. Mas
não sei como começar.
— Que tal do começo? — sugeri, sem querer colocar pressão, mas morrendo
de curiosidade.
Ele sorriu constrangido e pegou um chocolate em formato de estrela da
caixa e me entregou. Eu aceitei ainda examinando seu rosto a procura de alguma
informação, mas tudo o que vi foi um rapaz confuso e, até mesmo, arrependido.
— Foi uma coisa de momento — começou ele, olhando para todas as direções
menos para mim. — Você estava me ignorando naquela semana e eu achei que por
causa daquele meu comportamento ridículo no cinema, você não iria querer mais
nada comigo.
— Bom, foi ridículo mesmo. Desnecessário até, mas não era motivo para
que eu o ignorasse, Matheus. Você sabe a razão de eu não ter entrado em contato
antes. — expliquei.
— Eu sei, mas é que eu pensei... — ele deu de ombros e pegou outro
chocolate na caixa e o enfiou na boca de uma vez só, mastigando lentamente
antes de voltar a falar. — Acontece que eu pensei que você não queria mais
saber de mim. Você já tinha dito tantas vezes que não suportava namorados que
pegassem no seu pé que eu... Bem... Na minha cabeça já era certo de que você ia
me dar um pé na bunda, então...
Quanto mais ele falava, mais sentido estava fazendo. Pela dificuldade em
se explicar, só havia um motivo e, se a minha intuição estiver certa, a emenda
vai ser melhor que o soneto. E eu que estava preocupada em magoar seus
sentimentos.
— Quem é ela? — perguntei na tentativa de facilitar um pouco para o seu
lado. Ele me encarou como se uma segunda cabeça tivesse nascido sobre o meu
pescoço e eu apertei os lábios para não rir, mas falhei debilmente.
— Isso não é engraçado, Bella. — repreendeu-me ele, genuinamente
ofendido. Que irônico não? A ofendida ali deveria ser eu, afinal, era na minha
cabeça que um par de cornos brotava.
— É, você está certo. Não é engraçado. — concordei e virei o rosto na
direção da TV
de plasma na parede ao lado.
Matheus não respondeu a minha pergunta quanto à garota com que havia me
traído, mas aquilo já não me importava mais. Na verdade, até o que eu gostaria
de dizer a ele perdera totalmente a importância depois que meus olhos bateram
na manchete anunciada no rodapé da TV. A CNN
anunciava um acidente aéreo nos arredores de Edimburgo, na Escócia. Não dava
para ouvir o que o correspondente internacional relatava, mas pude acompanhar a
notícia pelas legendas que mudavam rapidamente enquanto ele falava. Ao que
parecia, o acidente foi devido a uma pane elétrica na hora do pouso e, até o
momento, a lista com os nomes dos passageiros a bordo não fora totalmente
divulgada. No entanto, algumas fotos dos passageiros confirmados eram exibidas
no canto superior direito da tela. Homens, mulheres, crianças e idosos. Até mesmo
uma família inteira foi extinta devido à tragédia. Mas havia também alguns
sobreviventes que, ainda recebendo atendimentos médicos no local, se prestavam
a dar relatos sobre o incidente. Na medida em que as imagens mudavam, eu perdi
completamente a noção de tempo e espaço. As vozes ao meu redor tornaram-se
apenas sussurros desconexos e sem importância. As legendas continuavam a mudar
freneticamente no rodapé da tela, tornando quase que impossível acompanhar a
notícia. Ouvi com gratidão quando alguém pediu para que Rita aumentasse o
volume da TV
e de repente, todos se calaram para ouvir.
A lista, extraoficial, tinha para mais de cento e cinquenta nomes, mas
apenas um em particular prendeu a minha atenção a ponto de eu me colocar de pé
num pulo. Se o que o jornalista disse for mesmo verdade, isso explicava por que
Friedrich não retornava as minhas ligações há duas semanas.
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