A missa de
sétimo dia de falecimento de minha mãe havia terminado há meia hora e eu ainda
estava na igreja, sentada e olhando para os vitrais, esperando que eles me
ajudassem a tomar a decisão certa. Friedrich partira para Ladônia sem a minha
resposta e bastante desapontado também. Não havia nada que eu pudesse dizer
àquele homem de quem só escutei coisas negativas. Levaria tempo para que a
imagem dele, pintada por minha mãe em minha mente, fosse mudada.
—
Bella? Está na hora de irmos. — sussurrou Alice, sentada no banco da fileira de
trás.
Eu
me preparava para levantar quando vi um folheto caído no chão. Nem mesmo as
igrejas estavam imunes à falta de educação das pessoas. Peguei o folheto e
estava prestes a amassa-lo quando meus olhos
bateram na frase em letras garrafais que encabeça o papel. “Para cada noite de dor, há um novo dia de
alegria”. Mudei de ideia e o guardei no bolso de trás do meu jeans, fazendo
o sinal da cruz ao sair da igreja atrás de Alice.
Alice
e Ângela não disseram uma única palavra durante todo o caminho de volta para
casa. O que foi bom, já que eu precisava estar com a cabeça vazia, para só
então enchê-la com intermináveis questionamentos. Ir ou não ir? Aceitar que
aquele homem é o meu pai ou não? Como vou me virar sozinha se ficar? E se eu
for e não gostar volto para onde? Eram tantas perguntas e nenhuma resposta.
Ângela estacionou o carro na frente do meu prédio e se ofereceu para subir.
Concordei e então elas me acompanharam. Ao sairmos do elevador, deparamo-nos
com um embrulho enorme atravancando todo o corredor com o Seu Salvador e dois
carregadores suando horrores para tirá-lo do caminho.
—
Alguém andou encomendando um elefante pela internet, Seu Salvador? — perguntou
Alice, caindo na gargalhada.
—
Antes fosse, Dona Alice. Antes fosse. Mas este pacote chegou agora a pouco e o
Dr. Osvaldo não está em casa. Vamos ter que descer com ele. Podem nos dar uma
licencinha?
Por
um segundo pensei que aquela caixa fosse para mim. O que não seria estranho, já
que o meu apartamento estava com uma coleção delas. Desde que Friedrich voltou
para Ladônia, não pararam de chegar caixas com móveis, eletrônicos,
eletrodomésticos... No dia que a primeira caixa chegou, Friedrich ligou:
—
Isabella, querida. Espero que tenha gostado dos equipamentos novos para a
cozinha. — falou todo empolgado. — Eu não entendo muito dessas coisas então...
—
É maravilhoso. — menti. As coisas ainda continuavam nas caixas, intactas e
lacradas. — Obrigada, Friedrich.
O
que eu não contava era que depois daquela, outras viriam. Muitas outras.
Meu
apartamento estava mais parecido com um depósito de
donativos para desabrigados do que com um lar propriamente dito. A
impressão que dava ao entrar era a de que eu ou estava me mudando ou me
preparando para mudar. Eram caixas que não acabavam mais. Hoje de manhã o
entregador deixou mais uma caixa e esta foi a única, entre todas, que eu abri.
Não era mais um presente de Friedrich e sim de Laura. A curiosidade em saber o
que ela havia mandado para mim, falou mais alto. A caixa ainda estava aberta
sobre o sofá e Alice e Ângela foram direto bisbilhotar assim que entramos.
—
Bella, isso é um arraso! — os olhos de Alice brilharam como luzes de natal ao
segurar um vestido de cetim azul petróleo pelas finas alças, mas logo depois o
sorriso que parecia partir seu rosto ao meio sumiu. — Aonde
usar uma preciosidade desta por aqui? Você é a pessoa mais antissocial que eu
conheço.
Fiz
uma careta para ela, mas no fundo fui forçada a concordar. Mesmo sendo filha de
uma promoter e viver cercada de celebridades,
ir aos eventos que minha mãe organizava era o mesmo que ir para a forca. Nunca
me senti bem andando por aí como uma boneca super produzida, com quilos de maquiagem
na cara e rindo para as coisas e pessoas mais sem graça que encontrava.
—
São presentes da Laura. — expliquei pegando o vestido das mãos dela e
devolvendo-o a caixa. — Mas não posso aceitar. Assim como todos esses outros
presentes.
—
Por que não ficar com eles, Bella? — questionou Ângela.
—
Isso não está certo, Ângela. Eu não sou assim, você sabe. Não quero que pensem
que podem comprar a minha decisão com
mobílias para a casa ou um novo guarda roupa. — coloquei a caixa no chão e sentei
no sofá. — Essa pressão toda está acabando comigo. Não consigo comer, não
consigo dormir. Tenho que voltar ao trabalho e a
faculdade amanhã, mas não estou com cabeça para nenhum dos dois... Eu
não sei o que fazer.
Ângela
sentou ao meu lado e pegou a minha mão.
—
Vamos por partes, tudo bem? O mundo não foi feito em um dia. Tome a sua decisão
sabiamente e leve o tempo que julgar necessário.
—
Aí é que está o xis da questão: eu não
quero ir. Mas sinto que devo. Entende? Está tudo tão confuso...
—
Sei que ninguém perguntou, mas vou dar minha opinião assim mesmo. — intrometeu-se
Alice ainda fuçando a caixa com os presentes de Laura. — Acho que você está
fazendo tempestade em copo d'água. Pense
comigo. — ela colocou de volta na caixa um conjunto de lingerie rosé e se jogou
no chão cruzando as pernas como as crianças em brincadeiras de roda — Com tudo
o que aconteceu com você nos últimos meses, esta seria uma ótima oportunidade
para espairecer, relaxar. E digo mais, você não estaria fazendo nada com o que
sua mãe discordasse.
—
Você sabe que dificilmente eu concordo com o que Alice diz, mas desta vez terei
que dar o braço a torcer e admitir que ela, neste ponto, tem razão. — Ângela fez
coro à filha. O que surpreendeu a nós duas.
A
relação entre Ângela e Alice era engraçada e estranha. Apesar de serem mãe e
filha, as duas pareciam duas colegas de dormitório da faculdade. Ângela vivia
dizendo a minha mãe que não existe receita para se criar um filho e que o
melhor é deixar que ele faça aquilo que lhe der vontade, para que aprenda a
acertar tomando os erros como aprendizado. Prova disso foi que ao completar 10 anos,
Ângela deixou que Alice viajasse sozinha para a Disney em uma excursão. Minha
mãe ficou horrorizada e eu, roxa de inveja. Mas, mesmo com todos esses
conselhos, ainda não me sentia preparada para dar adeus a minha vida aqui no
Brasil e conviver com uma família que nunca sequer ouvi falar.
—
Prometo que vou pensar. — disse, pela milésima vez, a frase que me recusava a
por em prática.
Isso nunca
tinha me acontecido antes. Nem mesmo quando eu era criança. Para dizer a
verdade, não consigo me lembrar de sonho algum que tivesse sonhado ao longo dos
meus singelos 18 anos. Pelo menos, não até
esta tarde.
Depois
de ouvir os conselhos de Alice e Ângela, decidi que estava na hora de parar de
adiar o momento de pensar no que acontecera na última semana. Fazendo uma breve
retrospectiva, coloquei na balança os prós e os contras desta decisão. Partir
para Ladônia seria o mesmo que um voo às cegas. Eu não sabia onde iria cair. E
esta queda estava me matando de medo. Por outro lado, penso que talvez Alice
tenha razão. Um lugar novo, com pessoas novas, pode ser bom. Aparentemente,
Friedrich e sua mulher, são gente boa. Mas tenho receio de me tornar alguém que não sou apenas para me encaixar em algum lugar.
E foi no meio dessas divagações que eu caí no sono, abraçada a um
porta-retratos com a foto de minha mãe.
Acordei
minutos ou foram segundos depois, não sei dizer, esbaforida e suando mais que
um maratonista em final de prova. Talvez fosse efeito do sono perturbador, com
cavalos e estábulos. Poderia jurar que senti o cheiro de esterco e couro em meu
quarto! Isso era um sinal de que o que eu mais temia era o meu próprio medo.
Mudar para um lugar estranho e distante era uma sensação parecida com a de
andar a cavalos. Só de pensar em um quadrúpede desembestado sob as minhas
pernas fazia os pelos do meu corpo arrepiarem.
Depois
de um bom banho frio a lembrança do sonho foi esquecida e eu estava, novamente,
me perguntando se havia mesmo tomado à decisão certa.
Para
o meu próprio bem, esperava que sim.
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