O aroma do
café mesclado ao de pães frescos invadiu meu quarto trazendo deliciosas
recordações das tardes em que minha mãe e eu passávamos juntas aos domingos.
Era o único dia da semana em que nos permitíamos não fazer absolutamente nada.
Minha boca encheu d'água só de lembrar o seu bolo de mandioca com coco e as
rabanadas que fazia especialmente para mim. Se eu estivesse em um desenho
animado agora, estaria flutuando em direção à sala, levada pelo aroma que
perfumava todo o apartamento.
Alice
arrumava a mesa, colocando xícaras e pires enquanto Ângela trazia uma cesta de
pães quentinhos. Elas não me viram entrar, então aproveitei a ocasião para
olhar minhas amigas. Elas eram tudo o que me restava agora. Eram a minha
família. Ignorar isso seria uma tremenda idiotice, mas não poderia impor isso a
elas. Alice e Ângela já tinham problemas demais para terem que se preocupar com
os meus. Mas, mesmo assim, aqui estavam elas, preparando o lanche e me fazendo
companhia. Porém, não fosse por um, ou mais um, inconveniente
detalhe, esta cena seria digna de um comercial de margarina. A família reunida
em volta da mesa, sorrindo e partilhando o alimento. Mas aquilo tinha que
estragar tudo.
Era
muita forçação de barra.
—
Isso já está passando dos limites! — esbravejei entrando na sala. — Vou dar um
jeito nisso agora.
—
Calma, Bella. — interveio Alice quando peguei o telefone. — Ele não faz por
mal.
—
Calma? Olhe só para esta sala, Alice. É
praticamente impossível andar aqui sem que uma caixa ou outra desabe. Eu já não
aguento mais toda essa pressão.
—
Sei que é difícil para você entender, Bella. Mas veja o lado dele também. —
falou Ângela servindo-me uma xícara de café. — Você ainda não deu nenhuma
resposta a ele. Como pai, acredito que ele esteja apenas querendo que você viva
com um pouco mais de conforto até que se decida. É um jeito meio torto de
querer compensar o tempo que vocês viveram afastados. Mas significa que ele se
importa com você.
Respirei
fundo, contando até dez. Já estava indo longe demais. A impressão que eu tinha
era de que, quanto mais eu demorasse a decidir, mais caixas chegariam e aí eu
teria que ser forçada a decidir, já que não haveria espaço ali para todas
aquelas coisas e eu.
—
Não é tão simples assim.
—
Por que não? — rebateu Alice puxando a cadeira para mim. — Você é quem está
complicando as coisas, Bella. Não é uma coisa definitiva. Você pode ir e, se
não gostar, é só voltar. Veja isso como se fossem férias. Isso. Férias!
Quando
digo que eu e esse ser estranho que responde por minha amiga temos uma ligação
que nem Freud explica, não é à toa. Eu já havia cogitado esta possibilidade. De
encarar esta ida para Ladônia como férias. Que mal haveria em passar alguns
meses com a parte da minha família que eu não conhecia? Agora ela ia ficar
impossível.
—
Bruxa! — acusei-a, mostrando a língua para ela.
Alice
quicou na cadeira dando palminhas de felicidade.
—
A-há! Eu não disse, mãe? Minha intuição nunca me engana.
—
Isso quer dizer então que você vai aceitar o convite do rei e passar uma
temporada em Ladônia? — quis saber Ângela, dando um gole em seu chá de ervas
que cheirava tão bem quanto os pães quentinhos. — Está mesmo disposta a isso?
—
Não. — respondi deixando escapar um riso nervoso. — Mas é isso ou continuar
brigando com essas malditas caixas neste apartamento. E por falar nisso —
levantei da cadeira e fui em direção ao motivo da minha explosão. —, o que
Friedrich mandou desta vez?
Percebi
que Alice e sua mãe ficam tensas com a minha atitude. O que é um tanto quanto
suspeito, já que elas sempre foram a favor de que Friedrich me mandasse
presentes.
—
Er... Bella, antes que você abra esta caixa, tem uma coisa que eu gostaria de
te contar.
Aquilo
me deixou mais tensa ainda. Alice não era dada a encabulamentos e muito menos
corar diante de alguma situação.
—
Friedrich ligou a três dias perguntando se havia algo que você gostaria muito
de ganhar ou comprar. Desculpe, Bella. Mas eu falei sobre as suas aulas de
violino então...
—
Você fez o quê? Alice! — parei no meio do caminho — Você sabe que eu só levei as
aulas de violino à diante por causa da minha mãe. Este era o sonho dela, não
meu.
—
Eu sei. Eu sei. Mas você toca tão bem que eu achei que não haveria problema...
Fã
de música clássica, minha mãe sempre insistiu para que eu aprendesse algum
instrumento. Ela era uma excelente pianista e seu sonho era que um dia
pudéssemos tocar juntas em um concerto. No início eu bati o pé e me recusei,
mas acabei me afeiçoando ao instrumento, porém, desde que eu soube da doença de
minha mãe, me dediquei com mais afinco às aulas de violino e ceder ao seu pedido
seria o mínimo que poderia fazer por ela naquele momento. Eu via em seus olhos
um brilho contagiante, sempre que ela ia assistir as minhas aulas, contrariando
as ordens médicas. Admito que levo jeito para a coisa, mas é algo que não queria
mais para a minha vida. Era um sonho dela que se realizava através de mim e só.
Não havia sentido continuar com a prática se ela não estaria lá para me
assistir.
Junto com
o presente de Friedrich — que nada mais era
que um legítimo Estradivário[1]
—, vieram três ingressos para um concerto que aconteceria naquela noite. Alice
ficou em êxtase, já que aquela era a
oportunidade perfeita para que eu tirasse o vestido que ganhei de Laura da
caixa, e também porque a deixei arrumar meu cabelo e fazer a maquiagem. Em
resumo, virei uma boneca Barbie em tamanho gigante nas mãos dela. As sete em
ponto, a limusine alugada por Friedrich chegou e Seu Salvador nos avisou pelo
interfone.
—
Desta vez eu me superei. Você está linda, Bella. — gabou-se Alice ao prender um
último grampo em meu cabelo e me girando para frente do espelho. — O que achou?
—
Uau! — Alice de fato havia feito um milagre. A garota leva jeito para a coisa.
— Tem certeza que sou eu ali, refletida naquele espelho?
—
Absoluta. Eu já disse que você é uma garota linda, Bella. Só precisa saber
explorar isso.
—
Andem logo meninas. O carro já chegou. — anunciou Ângela colocando apenas a
cabeça dentro do quarto.
—
Você ainda não se arrumou? — perguntei ao vê-la com a mesma roupa de hoje à
tarde.
—
Eu não vou.
—
Por quê?
—
Problemas no paraíso. — cochichou Alice. — Sabe quando os gatos saem e os ratos fazem a festa?
Traduzindo: Carlos dando trabalho mais
uma vez.
Aquilo era muito injusto. Com todos os problemas que vinha enfrentando
em seu casamento com Carlos, Ângela continuava tratando-me como prioridade. O
altruísmo dessa mulher não conhece limites.
— Apressem-se meninas. — disse Ângela cerrando os olhos severamente para
a filha, antes de voltar para o corredor.
— Mas o que foi que eu fiz desta vez? — resmungou Alice voltando para o
espelho para dar uma última checada no visual. — É proibido dizer a verdade
agora?
— Foi um comentário totalmente desnecessário né, Alice. — falei, pegando
minha bolsa sobre a cama. — Sei que ele não é perfeito, mas é dele que sua mãe
gosta.
Ela revirou os olhos para mim e me entregou os nossos celulares e um
vidro de gloss para que eu guardasse na bolsa.
— Não quero falar sobre isso. Será que podemos ir?
[1] É
o nome dado aos instrumentos
de corda, principalmente violinos e
violoncelos, construídos por membros da família Stradivari, sendo os
instrumentos mais reputados os do luthier Antonio
Stradivari (1644-1737).
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