27 de setembro de 2016

Isabella - Capítulo 2: O pedido de Elena



Parecia que eu tinha dormido por apenas cinco minutos, mas já havia se passado doze horas e meu corpo ainda estava na inércia, incapaz de mover-se para fora da cama sozinho. Meu sono foi agitado, pontuado por lembranças da conversa com Friedrich e Laura. Parte de mim queria acreditar que toda a história contada por ele fora fruto da minha imaginação perturbada pelo acontecido. Mas a outra parte, aquela racional, que a gente só costuma dar ouvidos quando já não dá mais para voltar atrás, gritava insistentemente em meus ouvidos para que eu fosse com calma, que mesmo que ele fosse a única família que me restava naquele momento, havia coisas que eu não poderia deixar para trás assim, subitamente. Virei de lado, cobrindo a cabeça com o travesseiro e gritei o mais alto que consegui. Não queria incomodar Alice além do necessário. Foi libertador, mas me doeu muito. Controlar as lágrimas não foi fácil. Saber que todos esses anos você viveu em uma mentira sem tamanho, não tinha explicação.
Friedrich me contou uma história totalmente contraditória com a de minha mãe. E o pior: Ele tinha prova de tudo.
Teria sido um conto de fadas daqueles se minha mãe não tivesse sido tão cabeça dura. Mas também pudera; depois de ser deixada sozinha em um quarto de hotel após uma noite de amor, nem eu iria querer mais ver a cara do infeliz. Acontece que Friedrich a deixou, não porque não a queria, mas porque um de seus parlamentares havia falecido e ele precisou voltar às pressas para Ladônia. Tudo isso havia sido explicado a ela numa carta que ele enviara assim que chegou a seu país e da qual nunca teve resposta.
— Eu me apaixonei por sua mãe no momento em que a vi, Isabella. — confessou ele, sem se importar que sua atual mulher estivesse ouvindo. Laura apenas olhou submissa para o marido, ainda acariciando sua mão. — Não foi fácil deixá-la.
— Mas não fez nada a respeito depois. — rebati mal criada. Aquela era o tipo de desculpa ensaiada na frente do espelho mais fajuta que eu já tinha escutado.
— Eu tentei. Juro. Logo depois de ter retornado para Ladônia, entrei em contato com o Buffet que organizou o evento e pedi a lista de funcionários presentes naquela noite, incluindo endereços e telefones. Depois de ter enviado a carta, eu liguei e descobri que Elena já não estava mais morando em São Paulo. A pessoa que me atendeu não soube me dizer para onde ela tinha ido, mas me garantiu que se a carta chegasse, faria o possível para que Elena a recebesse.
Até aí a história dele batia com a de minha mãe. Ela havia saído de São Paulo após receber um telefonema do advogado de meu avô, informando-a do falecimento dele. Minha mãe juntou todas as suas economias e partiu no mesmo dia para o Rio de Janeiro. Se não fosse pela tragédia, aquele teria sido o ponto alto de sua vida, segundo ela me contou. Como única filha, herdara uma pequena fortuna — pelo menos para os padrões daquela época —, e foi com este dinheiro que ela abriu a sua empresa de eventos.
Friedrich abriu o paletó e retirou uma folha, já bem gasta, mas que fui capaz de reconhecer ser uma das folhas que usava em meu fichário no colegial. Ele a desdobrou, com as mãos trêmulas, e me entregou. Apesar do aspecto, aquela folha ainda preservava o perfume que eu costumava borrifar nas folhas todo início de ano. Meus olhos encheram d’água ao ver a caligrafia, não tão perfeita assim, de minha mãe. No cabeçalho da página, a data fez meu coração pulsar com tanta força que chegou a doer. Era de pouco mais de uma semana.

“Friedrich,

Muito tempo se passou, não é mesmo? Sei que não foi justo deixar de responder a sua carta. Acredite, doeu muito tê-la ignorado. Mas imagine como eu fiquei quando soube quem você era de verdade? Eu não estava preparada para isso, para ser mãe, muito menos mãe da filha de um futuro rei! Não queria que a Isabella crescesse com esse estigma. Queria que ela fosse uma garota normal, que pudesse ir à escola anonimamente, sem ter que ser apontada na rua como a bastarda. Fui egoísta, eu sei. Principalmente com a Isabella. Vê-la crescendo e acreditando que o pai foi um canalha... Desculpe, mas eu achei melhor assim. Por um tempo. Mas agora não é o momento para analisar ou julgar a minha decisão.
Eu estou morrendo Friedrich.
Há seis meses fui diagnosticada com câncer de esôfago. Os médicos me disseram que as chances de cura seriam maiores se tivéssemos diagnosticado a doença no início. Mas agora ela está num estágio em que, achar uma cura, seria o mesmo que um milagre. Amo muito a nossa filha, Friedrich. Mas não suporto mais ver o quanto a minha doença a afeta. Ela é tão jovem, com toda uma vida pela frente... Acredito que quando esta carta chegar até você, eu já não esteja mais aqui. Queria ter mais tempo para explicar melhor os meus motivos, mas sei que você e Laura (sim, eu sei que você se casou. Tenho acompanhado sua vida pelos noticiários!) serão ótimos pais para Bella. Gostaria de estar presente neste encontro, de poder olhar nos seus olhos e pedir perdão pelo que fiz. Não somente a você, mas também a Isabella. Eu não tinha o direito de decidir por ela. Esta não era uma escolha exclusivamente minha. Mas como eu disse, não tenho mais tempo.
Preciso que venha ao Brasil o quanto antes, Friedrich. Você é a única família que resta a minha nossa querida Isabella. Não cometa com ela o mesmo erro que cometi com você. Deixe que ela decida se quer ou não que você faça parte de sua vida.

Elena Marins”

— Isso não quer dizer nada. — falei, tentando modular minha voz chorosa. — Qualquer um que soubesse da verdadeira história poderia ter escrito esta carta.
— Não pense que isso não passou pela minha cabeça, Isabella. Mas isto veio junto.
Friedrich pegou outra folha. Esta já estava amarelada e bem mais gasta que a primeira e me entregou. A caligrafia fina e rebuscada preenchia cada linha da folha que mais parecia um pergaminho antigo. O brasão da família real de Ladônia encabeçava a página datada há dezenove anos.
— Esta foi a carta que escrevi a sua mãe assim que retornei à Ladônia. — disse ele ao ver a confusão em meu rosto. — Quando a vi, não tive dúvidas que era mesmo Elena quem havia escrito aquela ali.
Para mim também não havia dúvidas. Eu reconheceria aquele perfume, aquela folha e, principalmente, aquela caligrafia torta e desconexa de minha mãe em qualquer lugar. O fato era que eu mesma não queria acreditar que em minhas veias poderia correr o sangue do homem diante de mim. O homem que durante toda a minha vida parecia mais um ser mitológico que um de carne e osso. Minha mãe mentiu para mim, mentiu para Friedrich e principalmente para si mesma. Não falo pelo dinheiro e pelo glamour da realeza, mas se eles estivessem juntos, talvez, ela ainda estivesse aqui conosco. Talvez, seríamos uma família.
Era muita coisa para assimilar em tão pouco tempo. Não tinham nem vinte e quatro horas que eu havia me despedido para sempre de minha mãe e lá estava eu, com uma decisão do tamanho do mundo para tomar: acreditar ou não que aquele homem era o meu pai. Coisa que, na cabeça dele, já era dada como certa. Friedrich recusou veementemente fazer um exame de DNA, sob a alegação de que não havia dúvida alguma de que eu fosse sua filha. Ele e Laura concordavam que nós dois tínhamos o mesmo tom de verde nos olhos, a mesma cor de fogo nos cabelos e o formato do nariz e do queixo eram características marcantes dos Zorcky.
— Sei o quão doloroso é este momento Isabella, mas ficaria honrado, sem mencionar muito feliz, se você pudesse vir conosco para Ladônia. — disparou Friedrich dobrando as cartas e entregando-as a mim.
— Que tipo de brincadeira é essa? — falei afrontada. — Eu acabei de conhecer vocês! Acham que eu vou correr para o meu quarto, fazer as malas e pegar o primeiro voo para Ladônia, sendo que eu nem sei em que continente esse raio de país fica, como se nada tivesse acontecido?
— Desculpe se passamos esta impressão, Isabella. — interveio Laura, colocando a mão em meu ombro para me acalmar. — Sabemos que é uma decisão importante e que deve ser tomada com calma. Nós a respeitaremos. Seja ela qual for. Mas adoraríamos que pudesse passar um tempo conosco.
Por que ela tinha que abrir a boca? Por que esta mulher tinha que lembrar tanto a minha mãe? Era praticamente impossível dizer não a ela. Respirei fundo tentando me acalmar.
— É muita coisa para digerir. Posso pensar?  — falei, sentindo-me envergonhada pela explosão anterior.
— Claro. — concordou Friedrich. — Só gostaria que mantivesse a mente aberta e tomasse a sua decisão com sabedoria. Temos que retornar a Ladônia na sexta. Acha que consegue pensar em alguma coisa até lá?
— Sexta!? Mas é depois de amanhã! Eu não posso tomar uma decisão importante como esta da noite para o dia, Friedrich. Tenho a faculdade, meu trabalho. Coisas a resolver...
— Eu sei. Não estou pedindo para que deixe sua vida para trás. Como Laura mesmo disse, respeitaremos a sua decisão, seja ela qual for. Mas gostaria muito de retornar ao meu país sabendo que em breve a terei por perto. — Friedrich ajoelhou-se diante de mim e pegou minhas mãos. — Eu não sabia da sua existência até receber esta carta, Isabella. Quero ter a chance de reparar qualquer julgamento que faça da minha pessoa. Não tenho o poder de voltar o tempo, mas farei o possível para que os próximos anos sejam especiais, inesquecíveis.
Eu desabei no sofá novamente, sentindo como se estivesse dentro de uma máquina de lavar no estágio de centrifugação. Minha cabeça girava e meu mundo tinha virado de ponta a cabeça. Num dia eu era apenas Isabella Marins, filha de uma publicitária, caloura no curso de administração e no outro estava prestes a me tornar Isabella Marins Zorcky, filha de Friedrich Zorcky e princesa de um país de onde nunca havia escutado falar.

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