Parecia
que eu tinha dormido por apenas cinco minutos, mas já havia se passado doze
horas e meu corpo ainda estava na inércia, incapaz de mover-se para fora da
cama sozinho. Meu sono foi agitado, pontuado por lembranças da conversa com
Friedrich e Laura. Parte de mim queria acreditar que toda a história contada
por ele fora fruto da minha imaginação perturbada pelo acontecido. Mas a outra
parte, aquela racional, que a gente só costuma dar ouvidos quando já não dá
mais para voltar atrás, gritava insistentemente em meus ouvidos para que eu
fosse com calma, que mesmo que ele fosse a única família que me restava naquele
momento, havia coisas que eu não poderia deixar para trás assim, subitamente.
Virei de lado, cobrindo a cabeça com o travesseiro e gritei o mais alto que
consegui. Não queria incomodar Alice além do necessário. Foi libertador, mas me
doeu muito. Controlar as lágrimas não foi fácil. Saber que todos esses anos
você viveu em uma mentira sem tamanho, não tinha explicação.
Friedrich
me contou uma história totalmente contraditória com a de minha mãe. E o pior:
Ele tinha prova de tudo.
Teria
sido um conto de fadas daqueles se minha mãe não tivesse sido tão cabeça dura.
Mas também pudera; depois de ser deixada sozinha em um quarto de hotel após uma
noite de amor, nem eu iria querer mais ver a cara do infeliz. Acontece que
Friedrich a deixou, não porque não a queria, mas porque um de seus
parlamentares havia falecido e ele precisou voltar às pressas para Ladônia.
Tudo isso havia sido explicado a ela numa carta que ele enviara assim que
chegou a seu país e da qual nunca teve resposta.
—
Eu me apaixonei por sua mãe no momento em que a vi, Isabella. — confessou ele,
sem se importar que sua atual mulher estivesse ouvindo. Laura apenas olhou
submissa para o marido, ainda acariciando sua mão. — Não foi fácil deixá-la.
—
Mas não fez nada a respeito depois. — rebati mal criada. Aquela era o tipo de
desculpa ensaiada na frente do espelho mais fajuta que eu já tinha escutado.
—
Eu tentei. Juro. Logo depois de ter retornado para Ladônia, entrei em contato
com o Buffet que organizou o evento e pedi a lista de funcionários presentes
naquela noite, incluindo endereços e telefones. Depois de ter enviado a carta,
eu liguei e descobri que Elena já não estava mais morando em São Paulo. A pessoa
que me atendeu não soube me dizer para onde ela tinha ido, mas me garantiu que
se a carta chegasse, faria o possível para que Elena a recebesse.
Até
aí a história dele batia com a de minha mãe. Ela havia saído de São Paulo após
receber um telefonema do advogado de meu avô, informando-a do falecimento dele.
Minha mãe juntou todas as suas economias e partiu no mesmo dia para o Rio de
Janeiro. Se não fosse pela tragédia, aquele teria sido o ponto alto de sua
vida, segundo ela me contou. Como única filha, herdara uma pequena fortuna —
pelo menos para os padrões daquela época —, e foi com este dinheiro que ela
abriu a sua empresa de eventos.
Friedrich
abriu o paletó e retirou uma folha, já bem gasta, mas que fui capaz de
reconhecer ser uma das folhas que usava em meu fichário no colegial. Ele a
desdobrou, com as mãos trêmulas, e me entregou. Apesar do aspecto, aquela folha
ainda preservava o perfume que eu costumava borrifar nas folhas todo início de
ano. Meus olhos encheram d’água ao ver a caligrafia, não tão perfeita assim, de
minha mãe. No cabeçalho da página, a data fez meu coração pulsar com tanta
força que chegou a doer. Era de pouco mais de uma semana.
“Friedrich,
Muito tempo
se passou, não é mesmo? Sei que não foi justo deixar de responder a sua carta.
Acredite, doeu muito tê-la ignorado. Mas imagine como eu fiquei quando soube
quem você era de verdade? Eu não estava preparada para isso, para ser mãe,
muito menos mãe da filha de um futuro rei! Não queria que a Isabella crescesse
com esse estigma. Queria que ela fosse uma garota normal, que pudesse ir à
escola anonimamente, sem ter que ser apontada na rua como a bastarda. Fui
egoísta, eu sei. Principalmente com a Isabella. Vê-la crescendo e acreditando que o pai foi um
canalha... Desculpe, mas eu achei melhor assim. Por um tempo. Mas agora não é o momento para
analisar ou julgar a minha decisão.
Eu estou
morrendo Friedrich.
Há seis
meses fui diagnosticada com câncer de esôfago. Os médicos me disseram que as
chances de cura seriam maiores se tivéssemos diagnosticado a doença no início.
Mas agora ela está num estágio em que, achar uma cura, seria o mesmo que um
milagre. Amo muito a nossa filha, Friedrich. Mas não suporto mais ver o quanto
a minha doença a afeta. Ela é tão jovem, com toda uma vida pela frente...
Acredito que quando esta carta chegar até você, eu já não esteja mais aqui.
Queria ter mais tempo para explicar melhor os meus motivos, mas sei que você e
Laura (sim, eu sei que você se casou. Tenho acompanhado sua vida pelos
noticiários!) serão ótimos pais para Bella. Gostaria de estar presente neste
encontro, de poder olhar nos seus olhos e pedir perdão pelo que fiz. Não
somente a você, mas também a Isabella. Eu não tinha o direito de decidir por
ela. Esta não era uma escolha exclusivamente minha. Mas como eu disse, não tenho mais tempo.
Preciso que
venha ao Brasil o quanto antes, Friedrich. Você é a única família que resta a minha
nossa querida Isabella. Não cometa com ela o mesmo erro que cometi com você.
Deixe que ela decida se quer ou não que você faça parte de sua vida.
Elena Marins”
—
Isso não quer dizer nada. — falei, tentando modular minha voz chorosa. —
Qualquer um que soubesse da verdadeira história poderia ter escrito esta carta.
—
Não pense que isso não passou pela minha cabeça, Isabella. Mas isto veio junto.
Friedrich
pegou outra folha. Esta já estava amarelada e bem mais gasta que a primeira e
me entregou. A caligrafia fina e rebuscada preenchia cada linha da folha que
mais parecia um pergaminho antigo. O brasão da família real de Ladônia
encabeçava a página datada há dezenove anos.
—
Esta foi a carta que escrevi a sua mãe assim que retornei à Ladônia. — disse
ele ao ver a confusão em meu rosto. — Quando a vi, não tive dúvidas que era
mesmo Elena quem havia escrito aquela ali.
Para
mim também não havia dúvidas. Eu reconheceria aquele perfume, aquela folha e,
principalmente, aquela caligrafia torta e desconexa de minha mãe em qualquer
lugar. O fato era que eu mesma não queria acreditar que em minhas veias poderia
correr o sangue do homem diante de mim. O homem que durante toda a minha vida
parecia mais um ser mitológico que um de carne e osso. Minha mãe mentiu para
mim, mentiu para Friedrich e principalmente para si mesma. Não falo pelo
dinheiro e pelo glamour da realeza, mas se eles estivessem juntos, talvez, ela
ainda estivesse aqui conosco. Talvez, seríamos uma família.
Era
muita coisa para assimilar em tão pouco tempo. Não tinham nem vinte e quatro horas
que eu havia me despedido para sempre de minha mãe e lá estava eu, com uma
decisão do tamanho do mundo para tomar: acreditar ou não que aquele homem era o
meu pai. Coisa que, na cabeça dele, já era dada como certa. Friedrich recusou
veementemente fazer um exame de DNA, sob a
alegação de que não havia dúvida alguma de que eu fosse sua filha. Ele e Laura
concordavam que nós dois tínhamos o mesmo tom de verde nos olhos, a mesma cor
de fogo nos cabelos e o formato do nariz e do queixo eram características
marcantes dos Zorcky.
—
Sei o quão doloroso é este momento Isabella, mas ficaria honrado, sem mencionar
muito feliz, se você pudesse vir conosco para Ladônia. — disparou Friedrich
dobrando as cartas e entregando-as a mim.
—
Que tipo de brincadeira é essa? — falei afrontada. — Eu acabei de conhecer
vocês! Acham que eu vou correr para o meu quarto, fazer as malas e pegar o
primeiro voo para Ladônia, sendo que eu nem sei em que continente esse raio de
país fica, como se nada tivesse acontecido?
—
Desculpe se passamos esta impressão, Isabella.
— interveio Laura, colocando a mão em meu ombro para me acalmar. — Sabemos que
é uma decisão importante e que deve ser tomada com calma. Nós a respeitaremos.
Seja ela qual for. Mas adoraríamos que pudesse passar um tempo conosco.
Por
que ela tinha que abrir a boca? Por que esta mulher tinha que lembrar tanto a
minha mãe? Era praticamente impossível dizer não a ela. Respirei fundo tentando
me acalmar.
—
É muita coisa para digerir. Posso pensar?
— falei, sentindo-me envergonhada pela explosão anterior.
—
Claro. — concordou Friedrich. — Só gostaria que mantivesse
a mente aberta e tomasse a sua decisão com sabedoria. Temos que retornar
a Ladônia na sexta. Acha que consegue pensar em
alguma coisa até lá?
—
Sexta!? Mas é depois de amanhã! Eu não posso tomar uma decisão importante como
esta da noite para o dia, Friedrich. Tenho a faculdade, meu trabalho. Coisas a
resolver...
—
Eu sei. Não estou pedindo para que deixe sua vida para trás. Como Laura mesmo
disse, respeitaremos a sua decisão, seja ela qual for. Mas gostaria muito de
retornar ao meu país sabendo que em breve a terei por
perto. — Friedrich ajoelhou-se diante de mim e pegou minhas mãos. — Eu não
sabia da sua existência até receber esta carta, Isabella. Quero ter a chance de
reparar qualquer julgamento que faça da minha pessoa. Não tenho o poder de
voltar o tempo, mas farei o possível para que
os próximos anos sejam especiais, inesquecíveis.
Eu
desabei no sofá novamente, sentindo como se estivesse dentro de uma máquina de
lavar no estágio de centrifugação. Minha cabeça girava e meu mundo tinha virado
de ponta a cabeça. Num dia eu era apenas Isabella Marins, filha de uma
publicitária, caloura no curso de administração e no outro estava prestes a me
tornar Isabella Marins Zorcky, filha de Friedrich Zorcky e princesa de um país
de onde nunca havia escutado falar.
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