Nunca
pensei em como seria a minha vida sem a minha mãe. Na verdade, não pensar, foi a maneira que nós duas
encontramos para aproveitarmos ao máximo possível o tempo que nos restava e
tentar assim, evitar o inevitável. Olhei para a sala vazia, ainda com o seu
perfume exalando pelo ar, e as lágrimas mais uma vez me vieram aos olhos. Tudo
ainda estava do jeitinho que ela deixara há uma semana, quando tivemos que sair
às pressas, para aquela que seria a sua última ida ao hospital. Não sei como
será daqui para frente, mas doía só de pensar. Peguei a xícara com o que
restara do café que tomávamos naquela tarde de domingo, relaxando em frente à TV, e a levei para a cozinha.
Sabia
que em algum momento eu teria que seguir em frente, que a vida continua. Mas
ficar neste apartamento, cheio de lembranças de minha mãe, como a coleção de
galinhas de porcelana sobre a bancada, não será
nada fácil. Alice me ofereceu abrigo em sua casa por uns dias. Eu fiquei de
pensar no assunto... Depois. Agora eu não queria pensar em nada. Não pensar era
bom, isso até deparar-me com um objeto ou outro do qual minha mãe tanto gostava
e começar todo o processo novamente. Abri a torneira deixando que a água umedecesse os restos de café grudento no fundo
da xícara e fiquei olhando-a encher e transbordar. Exatamente como me sentia.
Enchendo e transbordando.
A
campainha tocou e Alice atendeu. Eu não queria passar a noite de hoje sozinha,
tampouco passá-la fora de casa. Então pedi
para que Alice dormisse aqui comigo. Alice é uma boa amiga. Conhecemo-nos desde
sempre. Nossa ligação vai além do que a ciência possa explicar. Crescemos num
bairro no subúrbio do Rio e nos mudamos, quase que ao mesmo tempo, para a Ilha
do Governador. Minha mãe e Ângela, mãe de Alice, diziam que não havia nada no
mundo que pudesse nos separar. Que estávamos ligadas uma a outra de tal forma
que podíamos sentir o que a outra estivesse sentindo. Fosse algo bom ou ruim.
Fechei a torneira e esvaziei a xícara. Olhei para o fundo, verificando se ainda
havia restos de café, depois da limpeza. Ouvi um burburinho de vozes vindo da
sala e logo depois som de passos em direção à cozinha. Fui surpreendida pela
figura masculina de cabelos cor de fogo que surgiu na porta e me encarou, avaliando-me.
Por um instante pensei em perguntar quem era ele, mas minha voz não saiu. Nós
nos encaramos por mais alguns instantes até que ele falou, num inglês carregado
de um sotaque que desconheço, e os olhos cheios d’água:
—
Eu lamento tanto.
Quem
era aquele homem e de onde ele surgiu? Ainda me avaliando, ele deu alguns
passos na minha direção e fez menção de tocar meus cabelos, mas desistiu no
meio do caminho, deixando que seu braço caísse pesadamente ao lado do corpo.
—
Quem é você? — finalmente minha voz deu o ar da graça e meu cérebro não me
decepcionou ao lembrar a pronúncia correta das palavras em inglês.
—
Acredito que seja novidade para você também.
Tá bom, dá para deixar o suspense de lado? Caso não saiba, eu acabei de enterrar a
pessoa que mais amava neste mundo e não estou com cabeça para charadas.
Acho que ele percebeu que eu não estava com paciência e então disparou à queima-roupa:
—
Sou Friedrich Zorcky. Rei de Ladônia. E seu pai.
Meu o quê? Não percebi que estava tremendo até ouvir o trepidar
da xícara no pires ainda em minhas mãos. Minha mãe e eu nunca tocávamos neste
assunto. Era um terreno proibido, um tabu, já
que as lembranças não lhe eram agradáveis.
Segundo
minha mãe me contara — na única vez em que falamos sobre isso —, ela passou uma
única noite com ele e na manhã seguinte o sujeito saiu do quarto de hotel
deixando-a sozinha, com a conta paga e nenhum número de telefone. Aquilo bastou
para mim nos últimos oito anos, quando percebi que não importava mais se tinha
ou não um espaço vazio na filiação em minha cédula de identidade. Eu tive a
melhor mãe do mundo e isso sim me bastava.
Friedrich
continuava a me encarar sem saber como agir. Confesso que eu também não. E
então, inexplicavelmente, comecei a rir. Um riso histérico, isento de alegria,
que logo foi substituído por um choro descontrolado. Alice passou como uma
flecha esbarrando no ombro de Friedrich ao correr em meu auxílio. Ela me abraçou,
confortando-me e então se virou para ele.
—
Acho que este não é o melhor momento. — eu bem que poderia deixar toda esta
conversa internacional a cargo de Alice. Sua pronúncia era tão natural que me
deixava envergonhada pelos meus quatro anos de cursinho. — A Bella teve e está
tendo um dia difícil hoje. — ela passou a mão em meu braço e aquele carinho, de
certa forma, me confortou.
Friedrich
concordou com um aceno de cabeça, mas não fez nenhum outro movimento que indicasse
que já estivesse de saída e, ao invés disso, vi surgir por trás dele uma
mulher. Uma belíssima mulher de cabelos claros como fios de ouro e olhos tão
azuis que dava a impressão de que podiam me ver por dentro. Seu rosto era
gentil e ela sorriu para mim de um jeito carinhoso e maternal. Por um breve momento
ela me fez lembrar minha mãe.
Ainda
estava paralisada diante da figura da mulher que me encarava, que nem percebi
quando Alice substitui o pires e a xícara em minha mão por um copo de água. Um
arrepio percorreu o meu corpo e não sei dizer se era por causa da água gelada
ou porque não conseguia desgrudar os olhos daquela mulher. Friedrich percebeu a
nossa troca de olhares.
—
Esta é a minha mulher. Laura. — disparou ele, usando a deixa para chegar mais
perto de mim. — Sei que este não é o momento mais adequado, mas precisamos conversar.
Concordei,
mais automaticamente do que por vontade, e devolvi o copo vazio a Alice. Saí da
cozinha seguida pelo cortejo de Alice, Friedrich e Laura. Apontei para os sofás
vazios e nos sentamos. Alice sentou no braço da poltrona em que eu estava e a
todo o momento perguntava se estava bem. Eu já não sabia de mais nada e, estar bem, era o tipo
de sentimento que levaria um bom tempo para que eu voltasse a experimentar.
Eu queria dormir e esquecer que este dia jamais aconteceu. Se eu soubesse que
para descobrir quem era o meu pai a minha mãe teria que morrer, preferia dizer
a todos que nasci de um pé de repolho ou que fui trazida no bico de alguma
cegonha.
Friedrich
olhou compenetradamente para os quadros nas paredes. Em especial uma moldura
acima do sofá em que Laura estava. A tela, em preto e branco, foi pintada por
um artista de rua quando minha mãe e eu fomos ao centro da cidade para uma
conferência de meio ambiente, organizada por sua empresa de eventos.
Era final
de tarde e nosso carro estava parado no estacionamento da Catedral
Metropolitana. Minha mãe e eu corríamos feito loucas pelas ruas do centro. Ia
cair um toró daqueles e procurávamos por algum vendedor ambulante de
guarda-chuva. Até hoje não consigo entender de onde eles surgem com todas
aquelas variedades de cores e tamanhos, assim, de repente. Pode estar um sol de
rachar, mas basta o tempo fechar e lá vêm eles, surgindo do nada, gritando:
“Guarda-chuva, moça? Tá baratinho. Só dez reais.” Foi em meio a esta busca por
uma maneira de nos protegermos do temporal que estava chegando que decidimos
cortar caminho pelo Largo da Carioca. Era a rota mais rápida até a Catedral.
Gotas enormes começavam a pontilhar o chão e em questão de segundos, o céu
desabou. Corremos para a marquise mais próxima, protegendo nossas cabeças com
as pastas de informativos que foram distribuídas na conferência, e então nos
deparamos com Paulo. O sujeito era muito talentoso, e boa parte das telas
pintadas eram de artistas e casais famosos. Ele terminava a pintura de um
casal, que se espremia cada vez mais sob a marquise já lotada de pessoas a
procura de abrigo, quando minha mãe virou para mim e disse:
—
Ia ser legal ter um quadro deste lá em casa, não?
Olhei
para ela erguendo a sobrancelha e apontando para os quadros.
—
Fátima Bernardes e William Bonner ou Angélica e Luciano Huck?
Ela
riu jogando a cabeça para trás.
—
Não, sua boba. De nós duas. — ela caminhou diante das telas, sem se importar em
se molhar e parou subitamente, com sorriso de orelha a orelha — Igual a esta.
A
tela que ela escolheu era de duas pessoas. Duas mulheres. Talvez mãe e filha
também, ou apenas duas amigas que saíram para
almoçar e tiveram seus rostos retratados e expostos em pleno centro do Rio.
Elas pareciam felizes e uma delas tinha sardinhas no rosto, exatamente como as
minhas. Talvez fosse ruiva também.
—
O senhor tem tempo para mais um? — perguntou minha mãe ao pintor assim que o
casal saiu feliz e satisfeito, com a foto deles debaixo do braço.
—
Claro. As duas juntas?
—
Sim. — respondeu minha mãe passando o braço em volta do meu ombro. — De nós duas.
— Quem é o
artista? — perguntou Friedrich, passando o indicador pela moldura.
—
Paulo. Ninguém famoso. Um artista de rua. — respondi dando de ombros e soltando
o ar lentamente. — Será que podemos ir direto ao assunto?
Friedrich
concordou e sentou ao lado da mulher que segurou sua mão. Um gesto genuíno de
apoio ao marido. Deixei minhas costas desabarem sobre o encosto da poltrona e
fechei os olhos. Mais uma vez Alice me perguntou se eu estava bem e apenas
balancei a cabeça dizendo que não. E de fato não estava. Minha cabeça girava e
meu corpo exausto implorava por uma cama. Não estava sendo um dia fácil. Mesmo
com todas estas pessoas aqui presentes, nunca me senti tão sozinha.
—
Você está bem? — abri os olhos, espantada. Desde que chegou Laura não abrira a
boca uma única vez e, no entanto, quando o fez, os pelos do meu corpo se
arrepiaram. Inexplicavelmente, até o seu tom de voz lembrava o de minha mãe.
Ela então se virou para Friedrich, tomando o cuidado de falar em inglês para
não excluir-me da conversa — Fred, acho que não é o momento certo para falar
com ela a respeito disto. Veja como ela está cansada e abatida. Não é fácil
perder um ente querido. Principalmente a nossa mãe. Eu sei muito bem como é
isso. — e voltou então a me encarar. — O que acha de descansar um pouco,
querida?
Tentador. Quis dizer, mas também estava curiosa para saber o
que aquele que se diz meu pai, tinha a dizer.
Amei amei amei
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