26 de setembro de 2016

Isabella - Capítulo 1: A filha do rei



Nunca pensei em como seria a minha vida sem a minha mãe. Na verdade, não pensar, foi a maneira que nós duas encontramos para aproveitarmos ao máximo possível o tempo que nos restava e tentar assim, evitar o inevitável. Olhei para a sala vazia, ainda com o seu perfume exalando pelo ar, e as lágrimas mais uma vez me vieram aos olhos. Tudo ainda estava do jeitinho que ela deixara há uma semana, quando tivemos que sair às pressas, para aquela que seria a sua última ida ao hospital. Não sei como será daqui para frente, mas doía só de pensar. Peguei a xícara com o que restara do café que tomávamos naquela tarde de domingo, relaxando em frente à TV, e a levei para a cozinha.
Sabia que em algum momento eu teria que seguir em frente, que a vida continua. Mas ficar neste apartamento, cheio de lembranças de minha mãe, como a coleção de galinhas de porcelana sobre a bancada, não será nada fácil. Alice me ofereceu abrigo em sua casa por uns dias. Eu fiquei de pensar no assunto... Depois. Agora eu não queria pensar em nada. Não pensar era bom, isso até deparar-me com um objeto ou outro do qual minha mãe tanto gostava e começar todo o processo novamente. Abri a torneira deixando que a água umedecesse os restos de café grudento no fundo da xícara e fiquei olhando-a encher e transbordar. Exatamente como me sentia. Enchendo e transbordando.
A campainha tocou e Alice atendeu. Eu não queria passar a noite de hoje sozinha, tampouco passá-la fora de casa. Então pedi para que Alice dormisse aqui comigo. Alice é uma boa amiga. Conhecemo-nos desde sempre. Nossa ligação vai além do que a ciência possa explicar. Crescemos num bairro no subúrbio do Rio e nos mudamos, quase que ao mesmo tempo, para a Ilha do Governador. Minha mãe e Ângela, mãe de Alice, diziam que não havia nada no mundo que pudesse nos separar. Que estávamos ligadas uma a outra de tal forma que podíamos sentir o que a outra estivesse sentindo. Fosse algo bom ou ruim. Fechei a torneira e esvaziei a xícara. Olhei para o fundo, verificando se ainda havia restos de café, depois da limpeza. Ouvi um burburinho de vozes vindo da sala e logo depois som de passos em direção à cozinha. Fui surpreendida pela figura masculina de cabelos cor de fogo que surgiu na porta e me encarou, avaliando-me. Por um instante pensei em perguntar quem era ele, mas minha voz não saiu. Nós nos encaramos por mais alguns instantes até que ele falou, num inglês carregado de um sotaque que desconheço, e os olhos cheios d’água:
— Eu lamento tanto.
Quem era aquele homem e de onde ele surgiu? Ainda me avaliando, ele deu alguns passos na minha direção e fez menção de tocar meus cabelos, mas desistiu no meio do caminho, deixando que seu braço caísse pesadamente ao lado do corpo.
— Quem é você? — finalmente minha voz deu o ar da graça e meu cérebro não me decepcionou ao lembrar a pronúncia correta das palavras em inglês.
— Acredito que seja novidade para você também.
Tá bom, dá para deixar o suspense de lado? Caso não saiba, eu acabei de enterrar a pessoa que mais amava neste mundo e não estou com cabeça para charadas. Acho que ele percebeu que eu não estava com paciência e então disparou à queima-roupa:
— Sou Friedrich Zorcky. Rei de Ladônia. E seu pai.
Meu o quê? Não percebi que estava tremendo até ouvir o trepidar da xícara no pires ainda em minhas mãos. Minha mãe e eu nunca tocávamos neste assunto. Era um terreno proibido, um tabu, já que as lembranças não lhe eram agradáveis.
Segundo minha mãe me contara — na única vez em que falamos sobre isso —, ela passou uma única noite com ele e na manhã seguinte o sujeito saiu do quarto de hotel deixando-a sozinha, com a conta paga e nenhum número de telefone. Aquilo bastou para mim nos últimos oito anos, quando percebi que não importava mais se tinha ou não um espaço vazio na filiação em minha cédula de identidade. Eu tive a melhor mãe do mundo e isso sim me bastava.
Friedrich continuava a me encarar sem saber como agir. Confesso que eu também não. E então, inexplicavelmente, comecei a rir. Um riso histérico, isento de alegria, que logo foi substituído por um choro descontrolado. Alice passou como uma flecha esbarrando no ombro de Friedrich ao correr em meu auxílio. Ela me abraçou, confortando-me e então se virou para ele.
— Acho que este não é o melhor momento. — eu bem que poderia deixar toda esta conversa internacional a cargo de Alice. Sua pronúncia era tão natural que me deixava envergonhada pelos meus quatro anos de cursinho. — A Bella teve e está tendo um dia difícil hoje. — ela passou a mão em meu braço e aquele carinho, de certa forma, me confortou.
Friedrich concordou com um aceno de cabeça, mas não fez nenhum outro movimento que indicasse que já estivesse de saída e, ao invés disso, vi surgir por trás dele uma mulher. Uma belíssima mulher de cabelos claros como fios de ouro e olhos tão azuis que dava a impressão de que podiam me ver por dentro. Seu rosto era gentil e ela sorriu para mim de um jeito carinhoso e maternal. Por um breve momento ela me fez lembrar minha mãe.
Ainda estava paralisada diante da figura da mulher que me encarava, que nem percebi quando Alice substitui o pires e a xícara em minha mão por um copo de água. Um arrepio percorreu o meu corpo e não sei dizer se era por causa da água gelada ou porque não conseguia desgrudar os olhos daquela mulher. Friedrich percebeu a nossa troca de olhares.
— Esta é a minha mulher. Laura. — disparou ele, usando a deixa para chegar mais perto de mim. — Sei que este não é o momento mais adequado, mas precisamos conversar.
Concordei, mais automaticamente do que por vontade, e devolvi o copo vazio a Alice. Saí da cozinha seguida pelo cortejo de Alice, Friedrich e Laura. Apontei para os sofás vazios e nos sentamos. Alice sentou no braço da poltrona em que eu estava e a todo o momento perguntava se estava bem. Eu já não sabia de mais nada e, estar bem, era o tipo de sentimento que levaria um bom tempo para que eu voltasse a experimentar. Eu queria dormir e esquecer que este dia jamais aconteceu. Se eu soubesse que para descobrir quem era o meu pai a minha mãe teria que morrer, preferia dizer a todos que nasci de um pé de repolho ou que fui trazida no bico de alguma cegonha.
Friedrich olhou compenetradamente para os quadros nas paredes. Em especial uma moldura acima do sofá em que Laura estava. A tela, em preto e branco, foi pintada por um artista de rua quando minha mãe e eu fomos ao centro da cidade para uma conferência de meio ambiente, organizada por sua empresa de eventos.



Era final de tarde e nosso carro estava parado no estacionamento da Catedral Metropolitana. Minha mãe e eu corríamos feito loucas pelas ruas do centro. Ia cair um toró daqueles e procurávamos por algum vendedor ambulante de guarda-chuva. Até hoje não consigo entender de onde eles surgem com todas aquelas variedades de cores e tamanhos, assim, de repente. Pode estar um sol de rachar, mas basta o tempo fechar e lá vêm eles, surgindo do nada, gritando: “Guarda-chuva, moça? Tá baratinho. Só dez reais.” Foi em meio a esta busca por uma maneira de nos protegermos do temporal que estava chegando que decidimos cortar caminho pelo Largo da Carioca. Era a rota mais rápida até a Catedral. Gotas enormes começavam a pontilhar o chão e em questão de segundos, o céu desabou. Corremos para a marquise mais próxima, protegendo nossas cabeças com as pastas de informativos que foram distribuídas na conferência, e então nos deparamos com Paulo. O sujeito era muito talentoso, e boa parte das telas pintadas eram de artistas e casais famosos. Ele terminava a pintura de um casal, que se espremia cada vez mais sob a marquise já lotada de pessoas a procura de abrigo, quando minha mãe virou para mim e disse:
— Ia ser legal ter um quadro deste lá em casa, não?
Olhei para ela erguendo a sobrancelha e apontando para os quadros.
— Fátima Bernardes e William Bonner ou Angélica e Luciano Huck?
Ela riu jogando a cabeça para trás.
— Não, sua boba. De nós duas. — ela caminhou diante das telas, sem se importar em se molhar e parou subitamente, com sorriso de orelha a orelha — Igual a esta.
A tela que ela escolheu era de duas pessoas. Duas mulheres. Talvez mãe e filha também, ou apenas duas amigas que saíram para almoçar e tiveram seus rostos retratados e expostos em pleno centro do Rio. Elas pareciam felizes e uma delas tinha sardinhas no rosto, exatamente como as minhas. Talvez fosse ruiva também.
— O senhor tem tempo para mais um? — perguntou minha mãe ao pintor assim que o casal saiu feliz e satisfeito, com a foto deles debaixo do braço.
— Claro. As duas juntas?
— Sim. — respondeu minha mãe passando o braço em volta do meu ombro. — De nós duas.



— Quem é o artista? — perguntou Friedrich, passando o indicador pela moldura.
— Paulo. Ninguém famoso. Um artista de rua. — respondi dando de ombros e soltando o ar lentamente. — Será que podemos ir direto ao assunto?
Friedrich concordou e sentou ao lado da mulher que segurou sua mão. Um gesto genuíno de apoio ao marido. Deixei minhas costas desabarem sobre o encosto da poltrona e fechei os olhos. Mais uma vez Alice me perguntou se eu estava bem e apenas balancei a cabeça dizendo que não. E de fato não estava. Minha cabeça girava e meu corpo exausto implorava por uma cama. Não estava sendo um dia fácil. Mesmo com todas estas pessoas aqui presentes, nunca me senti tão sozinha.
— Você está bem? — abri os olhos, espantada. Desde que chegou Laura não abrira a boca uma única vez e, no entanto, quando o fez, os pelos do meu corpo se arrepiaram. Inexplicavelmente, até o seu tom de voz lembrava o de minha mãe. Ela então se virou para Friedrich, tomando o cuidado de falar em inglês para não excluir-me da conversa — Fred, acho que não é o momento certo para falar com ela a respeito disto. Veja como ela está cansada e abatida. Não é fácil perder um ente querido. Principalmente a nossa mãe. Eu sei muito bem como é isso. — e voltou então a me encarar. — O que acha de descansar um pouco, querida?
Tentador. Quis dizer, mas também estava curiosa para saber o que aquele que se diz meu pai, tinha a dizer.

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